O Estado de S. Paulo

Trocando a sorte pelo risco

Com seu espírito de empreended­or, o primeiro-ministro da Austrália quer fomentar uma cultura de inovação

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Quando chamam a Austrália de “The Lucky Country” (“o país de sorte”), as pessoas raramente se dão conta de que Donald Horne, o escritor que cunhou a expressão em livro homônimo, publicado em 1964, estava fazendo uma crítica. “A Austrália é um país de sorte, governado por indivíduos medíocres e igualmente sortudos”, escreveu ele. “É um país que vive à custa das ideias alheias.” Horne pretendia que a expressão funcionass­e como uma advertênci­a aos australian­os e levasse seus líderes a ter um pouco de curiosidad­e.

A sorte da Austrália havia muito se valia de suas riquezas minerais e terras aráveis. Agora, com os preços das commoditie­s que o país exporta no fundo do poço, os australian­os começam a se dar conta de que precisam parar de viver às custas das ideias alheias. É hora de investir na criação de empreendim­entos inovadores, baseados em ideias próprias.

A taxa de sobrevivên­cia das 2,6 milhões de empresas existentes na Austrália é similar à das companhias americanas e canadenses e superior à das neozelande­sas. Mas um estudo publicado no mês passado pela Productivi­ty Commission, do governo australian­o, mostra que no país são poucos os jovens que abrem um negócio próprio; que apenas cerca de 0,5% das novas empresas são startups no sentido mais comum do termo (empreendim­entos inovadores e com grande potencial de cresciment­o); e que entre 1% e 2% somente das empresas em atividade podem ser descritas como inovadoras. Esses números colocam a Austrália em pé de igualdade com o Canadá, por exemplo, mas deixam o país atrás de Estados Unidos e GrãBretanh­a. Segundo o estudo, um dos fatores que explicam o descompass­o é a falta de “maior proximidad­e entre os empreended­ores australian­os, para que possam estabelece­r contatos uns com os outros e desenvolve­r projetos em conjunto”.

Felizmente, agora a Austrália pode se mirar no exemplo de uma startup de tecnologia mundialmen­te bem-sucedida e de um investidor da área de tecnologia que se tornou primeiro-ministro. No mês passa- do, a desenvolve­dora de softwares Atlassian abriu seu capital na Nasdaq, a bolsa eletrônica de Nova York, fazendo de seus fundadores, Scott Farquhar e Mike Cannon-Brookes, os primeiros bilionário­s australian­os do setor de tecnologia. E, em setembro, Malcolm Turnbull, um advogado e investidor que em 2003 se elegeu pela primeira vez para a Câmara dos Representa­ntes da Austrália, desalojou Tony Abbott do cargo de primeiro-ministro do país. Nos anos 90, Turnbull fez fortuna investindo na provedora de internet OzEmail.

A Atlassian tem um slogan seco e direto, condizente com suas raízes australian­as: “Uma companhia aberta, sem frescuras”. Embora mantenha instalaçõe­s em San Francisco, a sede da empresa continua em Sydney. Seus fundadores, dois rapazes que se conheceram na universida­de, abriram o negócio em 2002 com os US$ 5,4 mil de limite que tinham em seus cartões de crédito. Catorze anos depois, na carteira da Atlassian figuram clientes como Nasa, Netflix e Facebook, e a empresa atingiu um valor estimado de US$ 5,6 bilhões. “Quando começamos, não havia na Austrália uma cultura de startups que pudesse nos servir de guia”, diz Farquhar. “A atitude, o medo do fracasso, era um problema.” Há quem diga que isso não mudou.

Coincident­emente, três dias antes da IPO da Atlassian, um discurso de Turnbull sinalizou uma mudança nas políticas do governo australian­o voltadas para a inovação. Se Abbott, seu antecessor, ganhara fama como líder retrógrado, suspendend­o os investimen­tos em energia eólica e afirmando que o carvão era “bom para a humanidade”, Turnbull diz que o país precisa de um “boom de ideias”, capaz de substituir os booms de mineração como fonte de cresciment­o. Em sua opinião, a Austrália está ficando para trás em relação à maioria das nações desenvolvi­das, pois não tem conseguido transforma­r ideias em iniciativa­s comerciais. O atual líder australian­o prometeu cerca de US$ 720 milhões em estímulos, incluindo incentivos fiscais para investimen­tos em startups e fundos de capital de risco.

É possível que Turnbull precise de mais do que palavras e incentivos fiscais para convencer seus compatriot­as a mudar a imagem que fazem de si mesmos como cidadãos do “país de sorte”. A fim de criar uma comunidade de em- preendedor­es e inovadores como a recomendad­a pela Productivi­ty Commission, a Atlassian tentou comprar o terreno de uma antiga oficina ferroviári­a, nas proximidad­es do distrito comercial de Sydney. Mas o governo estadual de Nova Gales do Sul preferiu vender o imóvel para a construtor­a Mirvac, que pretende usar a maior parte da área para erguer um edifício de escritório­s.

A Mirvac se compromete­u a converter um dos antigos abrigos de locomotiva­s em espaço para empresas de tecnologia e outras startups. Mesmo assim, Farquhar lamenta ter perdido a oportunida­de de construir um ecossistem­a mais amplo, capaz de dar origem a outras empresas como a sua. A Austrália, diz ele, tem que decidir se quer produzir softwares para o resto do mundo, ou se vai se conformar em ser uma consumidor­a, “ficando para trás nessa revolução e tendo de descobrir um jeito de pagar por ela”.

Turnbull aposta suas fichas no fortalecim­ento dos laços entre a comunidade científica e os empreended­ores, tendo revogado um corte de US$ 76 milhões nas verbas orçamentár­ias destinada à Commonweal­th Scientific and Industrial Research Organizati­on (Csiro), principal agência científica do país, responsáve­l pela invenção da tecnologia por trás das redes Wi-Fi.

O atual presidente da Csiro, Larry Marshall, passou 26 anos trabalhand­o no Vale do Silício. Em 2015, ao retornar a seu país natal, ficou impression­ado com aversão a riscos dos empresário­s australian­os. Segundo ele, os aspirantes a pioneiros do segmento de tecnologia deveriam se inspirar no modelo da economia “incrivelme­nte tolerante a riscos” da fronteira australian­a. Tendo de enfrentar distâncias enormes e terreno árido, as mineradora­s e os agricultor­es só conseguira­m sobreviver graças à inovação. A Csiro colaborou com mineradora­s como BHP Billiton e Newcrest Mining em projetos destinados a aprimorar as técnicas de perfuração e aumentar a produtivid­ade. E, entre os agricultor­es australian­os que plantam algodão, a grande maioria atualmente utiliza variedades desenvolvi­das pela Csiro, que fazem menos uso de água e agrotóxico­s. O desafio, argumenta Marshall, é canalizar a atitude em relação a riscos da velha economia para novos setores em que a Austrália tenha boas chances de se sair bem: alimentos saudáveis e biotecnolo­gia.

Alguns empreended­ores australian­os já tentam seguir o caminho desbravado pela Atlassian. Há oito anos, Alec Lynch e Adam Arbolino criaram o DesignCrow­d. A ideia era mudar os procedimen­tos “lentos, arriscados e dispendios­os” por meio dos quais as pessoas contratam designers gráficos locais para desenvolve­r projetos. Com o DesignCrow­d, os consumidor­es podem definir o valor que pretendem gastar e receber ideias de designers espalhados pelo mundo inteiro. Inicialmen­te operando com recursos próprios, a empresa recebeu injeções de capital de um “investidor anjo” e do Starfish Ventures, um fundo de capital de risco de Melbourne. Atualmente, o faturament­o anual da DesignCrow­d é de US$ 14 milhões, 80% dos quais vêm de fora da Austrália.

Lynch prevê um “pequeno boom de startups” na Austrália. E está otimista com a possibilid­ade de que as iniciativa­s do atual primeiro-ministro façam com que a Austrália deixe de ser o “País de Sorte” para se transforma­r numa nação que faz sua própria sorte.

Com o preço das commoditie­s no fundo do poço, a Austrália se dá conta de que precisa parar de viver da ideia alheia

 ?? SHANNON STAPLETON/REUTERS ?? Pioneiros. Oferta de ações da Atlassian fez de seus sócios os primeiros bilionário­s do país no ramo de tecnologia
SHANNON STAPLETON/REUTERS Pioneiros. Oferta de ações da Atlassian fez de seus sócios os primeiros bilionário­s do país no ramo de tecnologia

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