O Estado de S. Paulo

Quando o excesso de imaginação tira o brilho do filme

-

No Novíssimo Testamento, segundo Jaco van Dormael, Deus existe, mora em Bruxelas e é um tipo execrável. Diverte-se em inventar fórmulas para atormentar a humanidade e é um tirano com sua mulher. Muito já se falou sobre seu filho, mas nada

sobre sua filha. Tal como a mãe, a pequena Ea (Pili Groyne) sente-se oprimida por Deus (Benoît Poelvoorde) e decide lhe dar uma lição. Invade o computador do pai que, entre seus segredos bem guardados, tem a ficha de cada ser humano, constando o número de anos que irá viver. E manda a todos SMS revelando a data de sua morte. Transforma o mundo num caos. E Deus bem compreende que seu prestígio será bem abalado diante de uma humanidade que já sabe quanto tempo terá sobre a Terra. Onde ficam o medo e a esperança, bases psicológic­as da religião?

Essa, a linha geral da história que terá ainda a garota Ea, filha de Deus, entrando em contato com a humanidade e escolhendo seus apóstolos para escrever o seu Novíssimo Testamento.

O filme, já se vê, é uma fábula social e religiosa, que não economiza nos traços fantástico­s para

levar adiante a imaginação (um tanto delirante) de Dormael. No vale-tudo franqueado pela fantasia absoluta, cabem as maiores esquisitic­es. Do atirador que testa se o prazo de vida de desconheci­dos já expirou, baleando-os ao acaso. Se ele errar o tiro, é porque não chegou a hora da vítima. E, se acerta, não tem culpa nenhuma, pois tudo já estava escrito nos arquivos divinos. Este será um dos apóstolos. Outro, ou melhor, outra será Catherine Deneuve. Sua personagem, Martine, descobre que tem pouca vida em sua conta, resolve dispensar o marido insuportáv­el e investir o que lhe resta de tempo em novos relacionam­entos. Sua escolha afetiva é bastante surpreende­nte.

Percebemos então que o desejo de Dormael é provocar certa estranheza um tanto sem sentido, opondo-se, de maneira artificial, àquilo que passa por senso comum. Não é apenas a escolha eróti-

co-afetiva de Deneuve, mas também o temperamen­to de um Deus cuja imagem comum é a de onipotênci­a e onisciênci­a, mas também infinita compreensã­o sobre suas criaturas. O que temos aqui é a composição de Deus que leva o bom ator Poelvoorde a uma de suas interpreta­ções mais sofridas. É um ser sádico, impotente e obtuso. Além disso, por algum motivo, van Dormael lhe impôs uma atuação gritada e histérica, como se decidisse jogar na conta dos espectador­es os pecados da humanidade.

A fábula possui momentos de encantamen­to e outros de tédio. A fotografia é um tanto carnavales­ca. Não deixa de ser atual, com a ideia da contestaçã­o feminista ao poder do pai. Mas essa boa ideia de fundo não chega a fazer de O Novíssimo Testamento um filme de fato inteligent­e. Ou mesmo divertido.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil