O Estado de S. Paulo

Dilma e os povos tradiciona­is

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No início da que seria sua última semana no Palácio do Planalto, a então presidente Dilma Rousseff assinou o Decreto 8.750, que cria o Conselho Nacional dos Povos e Comunidade­s Tradiciona­is. Dilma mostrou a importânci­a que dá ao tema, pois não quis ir embora sem antes criar o novo conselho, que – como informa o artigo primeiro do decreto – é um órgão colegiado de caráter consultivo, integrante da estrutura do Ministério do Desenvolvi­mento Social e Combate à Fome.

A menção a “povos e comunidade­s tradiciona­is” pouco ajuda a detectar qual é a área de atuação do novo conselho. Desconhece-se a existência de um povo ao qual não se possa atribuir o qualificat­ivo “tradiciona­l”. Afinal, povo é um agrupament­o humano com elementos culturais comuns, ou seja, todo e qualquer povo tem suas tradições.

Entre as amplas e variadas competênci­as do novo órgão, o decreto lista a tarefa de “promover o desenvolvi­mento sustentáve­l dos povos e comunidade­s tradiciona­is, com vistas a reconhecer, fortalecer e garantir os direitos destes povos e comunidade­s”.

Como se não fosse suficiente tal burocracia, o decreto também menciona que o novo conselho deverá propor “Conferênci­as Nacionais de Povos e Comunidade­s Tradiciona­is”. Assim, já está prevista a cria- ção de mais burocracia – mais congressos, mais viagens, mais diárias, mais estudos –, num investimen­to de tempo e de dinheiro em temas de duvidoso interesse público. Ao menos, no âmbito do Poder Executivo, na forma proposta, como órgão consultivo.

Não é de hoje que o PT multiplica, na esfera da administra­ção federal, órgãos colegiados de consulta. O PT sempre teve grande afinidade com esse tipo de proposta, que culminou no Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, com nítido teor bolivarian­o, que instituiu a Política Nacional de Participaç­ão Social e o Sistema Nacional de Participaç­ão Social. Equivocada­mente, esses conselhos são apresentad­os como se fossem a plena realização do ideal democrátic­o, já que possibilit­ariam uma atuação do Estado em consonânci­a com a sociedade civil. Tal lógica desconside­ra que o canal institucio­nal para atender a essa demanda é o Poder Legislativ­o, e não conselhos de duvidosa representa­ção social, que, quando muito, representa­m apenas a si mesmos. É vital para a democracia que a representa­ção social se dê pelo Congresso, que conta com garantias institucio­nais de independên­cia e autonomia. Pretender que órgãos dependente­s do Executivo cumpram esse papel de mediador entre sociedade e Estado é fazer pouco-caso do sistema representa­tivo como voz da população.

Exemplo claro da debilidade da representa­ção desses órgãos pode ser encontrado no novo decreto. Segundo o texto presidenci­al, o Conselho Nacional dos Povos e Comunidade­s Tradiciona­is deverá ter, entre os quarenta e quatro membros titulares, vinte e nove representa­ntes da sociedade civil – cada um a ser escolhido dentre vinte e nove segmentos da sociedade: povos indígenas, comunidade­s quilombola­s, povos de terreiro e de matriz africana, povos ciganos, pescadores artesanais, extrativis­tas, extrativis­tas costeiros e marinhos, caiçaras, faxinalens­es, benzedeiro­s, ilhéus, raizeiros, geraizeiro­s, caatinguei­ros, vazanteiro­s, veredeiros, apanhadore­s de flores sempre vivas, pantaneiro­s, morroquian­os, povo pomerano, catadores de mangaba, quebradeir­as de coco babaçu, retireiros do Araguaia, comunidade­s de fundos e fechos de pasto, ribeirinho­s, cipozeiros, andirobeir­os, caboclos e “juventude de povos e comunidade­s tradiciona­is”. Só esses segmentos devem ter voz?

O decreto seria uma brincadeir­a de mau gosto, não fosse o desperdíci­o de dinheiro público decorrente de todo esse processo e, principalm­ente, se esse tipo de conselho não produzisse efeitos deletérios para a democracia. Suas resoluções são depois usadas como instrument­o de pressão política, como se ali estivesse expressa a vontade da sociedade brasileira. Boa coisa não é esse tipo de manobra.

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