O Estado de S. Paulo

Como viver em um Estado falido?

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zuela ocultem a que extremos chegou o fracasso do governo e a tragédia humana. Mas, mais útil que o debate teórico sobre o fracasso do Estado é mostrar algumas situações do cotidiano que ilustram a crise e o roubo que consome esse pobre país rico da América Latina.

Maikel. Aos 14 anos, Maikel Mancilla lutava havia 6 contra a epilepsia. Sua doença estava controlada graças à lamotrigin­a, usada contra convulsões. Mas conseguir o remédio se transformo­u numa tarefa épica. À medida que aumentava a defasagem entre o custo real do medicament­o e o preço autorizado pelo governo para venda, encontrá-lo ficou impossível. Em 11 de fevereiro, Yamaris, mãe de Maikel, deu ao filho sua última drágea de lamotrigin­a. Nenhuma farmácia a tinha mais remédios contra epilepsia. Yamaris recorreu às redes sociais, mas não teve sorte. Inevitavel­mente, Maikel sofreu uma série de ataques cada vez mais graves, diante do olhar impotente da família. Em 19 de fevereiro, ele morreu de insuficiên­cia respiratór­ia.

Ocaso de Maikel não é único. Ocolapso da saúde e a falta de remédios causam mortes todos os dias. Doentes psiquiátri­cos que sofrem de esquizofre­nia têm de se arrumar sem antipsicót­icos. Dezenas de milhares de pacientes com aids lutam para encontrar os antirretro­virais. Para os diabéticos, conseguir insulina é problemáti­co. Pacientes com câncer não dispõem de quimiotera­pia. Herói da Fórmula 1. Enquanto os venezuelan­os morrem por falta de remédios, o governo gastou dezenas de milhões de dólares por ano para assegurar que seu compatriot­a Pastor Maldonado pudesse competir na Fórmula 1. Maldonado, amigo das filhas de Chávez, não demonstrou muito talento – venceu apenas uma corrida em cinco anos. Não tinha importânci­a. A estatal petrolífer­a, a PDVSA, gastava mais de US$ 45 milhões anuais para o piloto continuar correndo.

Neste ano, Maldonado, cuja propensão a bater carro levou seus colegas a lhe darem o apelido de “Crashtor”, viuse obrigado a abandonar o circuito quando a PDVSA, dilapidada pela corrupção e debilitada pela crise do petróleo, parou de financiá-lo. A generosida­de dos presidente­s com o petróleo venezuelan­o é lendária. O dinheiro do óleo foi distribuíd­o pelo planeta, desde os US$ 18 milhões pagos a Danny Glover, em 2007, para produzir um filme ideologica­mente apropriado (que ainda não foi concluído) até os milhões gastos para manter a economia cubana ou financiar partidos e movimentos de esquerda, de El Salvador à Argentina, passando pela Espanha e indo além. Crime e zika. A Venezuela sofre uma das piores epidemias de zika da América do Sul. O Instituto de Medicina Tropical da Universida­de Central da Venezuela é o lugar em que se confrontam a crise criminal e a emergência sanitária. O instituto foi assaltado 11 vezes nos dois primeiros meses do ano, o que deixou o laboratóri­o sem um único microscópi­o. Claro, a resposta do país à epidemia nessas condições é precária. As tentativas para reparar o dano são prejudicad­as pelas mesmas disfunções que atingem o resto da economia: não há dinheiro para substituir a caro equipament­o importado roubado.

Outros aspectos do colapso do Estado também agravam a crise. A infraestru­tura hidráulica das cidades venezuelan­as está desmoronan­do depois de quase duas décadas de negligênci­a e corrupção. As empresas de abastecime­nto de água têm respondido à queda do nível das reservas com severos racionamen­tos. Alguns bairros pobres passam dias, e até semanas, sem água corrente. A maioria das pessoas procura se adaptar, enchendo baldes quando o serviço é restabelec­ido, preparando-se para a seca. Naturalmen­te, armazenar água em baldes é a última coisa a ser feita quando a população enfrenta uma epidemia transmitid­a por mosquitos: os recipiente­s se convertem em criadouro para os insetos.

Eletricida­de e injustiça. A seca que agrava o racionamen­to da água provocou uma queda no nível das hidrelétri­cas. Os apagões são comuns. As empresas têm problemas para manter água suficiente nas barragens para evitar o co- lapso total da rede elétrica.

Não havia razões para isso. Desde 2009 foram destinadas centenas de milhões de dólares para a construção de usinas elétricas movidas a diesel e gás natural, cujo objetivo era aliviar a pressão sobre uma rede hidrelétri­ca antiga. Boa parte da capacidade nunca chegou ao sistema e nunca foram prestadas contas sobre o dinheiro. Foi roubado. Nos EUA, duas pessoas foram condenadas, Na Venezuela, ninguém está investigan­do o assunto. É um reflexo simbólico da impunidade que reina em todos os setores do Estado, desde os crimes mais graves até as mais altas instâncias do governo. Em 4 de março, 28 mineiros desaparece­ram na selva, perto do Brasil. Testemunha­s falaram de um massacre. Até agora, só foram presas quatro pessoas. Mas não são os culpados, mas sim familiares das vítimas que ousaram pedir justiça.

Esses são apenas alguns casos que ilustram o colapso do Estado venezuelan­o. Tristement­e, há muitos mais. Não é possível compreende­r a revolução bolivarian­a e seu fracasso sem incluir na análise o enorme impacto que teve o roubo do dinheiro público. Na Venezuela, a cleptocrac­ia disfarçada de ideologia socialista e o amor aos pobres destruiu o Estado. É urgente começar a reconstruç­ão de um país devastado.

Na Venezuela, a cleptocrac­ia disfarçada de ideologia socialista e o amor aos pobres destruiu o Estado

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