O Estado de S. Paulo

Em Cannes, Spielberg fala ao ‘Estado’ do novo filme e reflete sobre sua obra

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nhar acordado e colocar na tela.” Quanto aos pesadelos da idade adulta... “Tenho feito filmes sobre a guerra, o Holocausto, a escravidão ( O Resgate do Soldado Ryan, A Lista de Schindler e Amistad). Posso ser um sonhador utópico. Mas me impression­a até hoje que o homem prefira usar o desenvolvi­mento tecnológic­o para dominar e até destruir seu semelhante. Prefiro usar para tentar construir um mundo melhor. Esse festival ( Cannes), que mostra filmes de todo o mundo, de todos os tamanhos e formatos, é a prova de que a democracia pode e deve nos tornar iguais. Esse, sim, é o grande sonho. Não creio que a democracia tenha conseguido, na maioria dos países, erradicar a desigualda­de social. É algo por que devemos continuar lutando.”

Estar frente a frente com o grande homem, olhando no olho, fornece a chance de esclarecer uma dúvida. Aqui mesmo no Estado, o repórter escreveu diversas vezes que O Terminal, Guerra dos Mundos e Munique formam uma trilogia informal de Spielberg sobre o 11 de Setembro. Isso é consciente ou está nos olhos de quem vê? “No caso de Guerra dos Mundos, sim, é totalmente consciente. Fiz o filme movido pelo sentimento profundo que me provocaram as imagens do ataque às Torres Gêmeas. O Terminal, não. Ba- seia-se numa história real, que ocorreu na França muito antes de 2001. E Munique, por que você acha que tem a ver com o 11 de Setembro?” Vamos por etapas – O Terminal pode se basear numa história anterior, mas o sentimento de xenofobia do personagem de Stanley Tucci tem a ver com a paranoia que a presidênci­a de George W. Bush explorou. E, em Munique, é fundamenta­l a frase de Golda Meir, quando ela diz que a caça ao terrorismo pode nos levar a perder a alma.

“Na verdade, não é bem isso que ela diz, embora seja o espírito”, corrige Spielberg. “O que ela diz é que não devemos nos arriscar a perder nossos valores. Sem eles, somos nada. E entendo o que você está querendo dizer sobre O Terminal. Fiz o filme influencia­do por um sentimento muito forte que percebia na América, na época. Quando Bush fez sua guerra contra Saddam ( Hussein), não foi para consolidar a democracia, mas para terminar o serviço iniciado por seu pai ( na primeira guerra do Iraque).”

A pergunta que não quer calar – Tom Cruise, que entrega a filha à mãe, mas não entra na casa no fim de Guerra dos Mundos, é uma homenagem a John Ford e a John Wayne, quando a porta se fecha com Ethan do lado de fora, no desfecho de Rastros de Ódio? “É a primeira vez que me perguntam isso. Se tivesse colocado a câmera dentro da casa e fechado a porta, teria sido uma homenagem consciente. Mas fico lisonjeado que você tenha feito essa associação. Rastros de Ódio é um dos grandes filmes do cinema, e John Ford, um dos grandes diretores.”

OK, a associação pode estar na mente do repórter, mas, em Cavalo da Guerra, o espírito de Ford está presente em todo o filme, não? “Aí, sim. E também em Lincoln. O cinema de Ford tem uma ligação muito forte com a terra, seja Monument Valley nos westerns ou a Irlanda idealizada de Depois do Vendaval. Todos os meus filmes tratam de jornadas, da volta para casa, mas o tema é visceral em Cavalo da Guerra.” O repórter dá uma de tiete – diz que é um de seus Spielberg preferidos. “Muito obrigado, mas a verdade é que é um dos meus (preferidos) também.”

De volta a O Bom Gigante Amigo, o filme assinala o retorno de Spielberg a Cannes quase 35 anos depois de E.T., cujo roteiro também foi escrito por Melissa Mathison (e ela morreu em novembro passado). Rebecca Hall contou que Melissa esteve presente todo o tempo no set. Isso é comum nos filmes de Spielberg? “Por mim, seria. Embora concorde com Hitchcock (fil- mar é passar o filme pela câmera), gostaria de ter os roteirista­s comigo para eventuais mudanças que se tornem necessária­s. Por mais que a gente prepare, atores e técnicos são seres vivos, têm ideias e muitas vezes propõem coisas que nos escaparam na preparação. O problema é que os roteirista­s, em geral, não estão disponívei­s. Já embarcaram em outros projetos. Melissa, não. Além de grande amiga, ela abraçava um filme de cada vez e se dedicava inteiramen­te. Trabalhamo­s muito em O Bom Gigante Amigo para expressar na tela o tema dos sonhos, que está no livro de Roald ( Dahl).”

O filme marca a segunda colaboraçã­o consecutiv­a do diretor com Mark Rylance, que ganhou o Oscar de coadjuvant­e por Ponte dos Espiões. Os dois vão fazer mais dois filmes juntos, e um deles promete ser mais um daqueles (grandes) Spielberg adultos – The Kidnapping of Edgardo Mortara, sobre um garoto judeu italiano do século 19 forçado a se cristianiz­ar e cujos pais foram à Justiça contra o próprio Vaticano. Spielberg está sempre professand­o seu credo humanista – uma vida vale todas as vidas. “Na verdade, não sou eu. Está no Talmud.” De ascendênci­a judaica, ele é religioso? É a única pergunta que Spielberg não responde. “Desculpe, mas é um assunto muito íntimo”, justifica-se.

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