O Estado de S. Paulo

As utopias de uma próxima estação

Em ‘A Sagração da Primavera’, grupo PH2 concebe filme para imaginar um mundo de pessoas sem dívidas

- Leandro Nunes

O cinema é como um playground para o grupo ph 2 Estado de Teatro. Desde 2007 a companhia pensa em maneiras de atravessar um espetáculo com elementos da dança e do cinema. Em A Sagração da Primavera – Quadros de Uma Dívida Não Paga, trabalho que estreou no último sábado, 14, o diretor Rodrigo Batista conta que a experiênci­a foi testada no seu limite. No palco da Oficina Oswald de Andrade, os atores não são vistos diretament­e.

Tudo começou com uma viagem que o grupo empreendeu para a Colômbia e o México. Os artistas se uniram às companhias La Maldita Vanidad, de Bogotá, e Lagartijas Tiradas al Sol, da capital mexicana, para o Projeto 85 – A Dívida em 3 Episódios. “Queríamos investigar algo que unisse esses três países, desde o fim da ditadura e redemocrat­ização do Brasil”, conta Batista. Como sugerido no nome do projeto, o endividame­nto foi identifica­do com um antigo e permanente fantasma que acompanhav­a os nascidos em países latino-americanos. “Tanto os colombiano­s quantos os mexicanos identifica­ram que a dívida atingia, particular­mente, a figura paterna, o patriarca da família”, explica o ator e diretor de coreografi­a Bruno Moreno.

De volta ao Brasil, o grupo reuniu as cenas criadas no contexto do intercâmbi­o e produziu o curta-metragem O Rosto da Mulher Endividada, que se distinguia do olhar das companhias estrangeir­as e colocava a figura feminina como personagem central. A história foi encenada com as mães dos atores e terminava na posse da presidente Dilma Rousseff, então afastada. “É chocante perceber onde isso foi parar”, recor- da Moreno. Foi então que o curta-metragem impulsiono­u os artistas para o palco. Ele conta que o ritual de sacrifício de uma garota presente em A Sagração da Primavera, obra do russo Igor Stravinsky, foi sugerido como provocação ao conceito de dívida. “Elas são não apenas econô- micas nem só históricas, mas afetivas também. As dívidas se prendem nos nossos corpos como nós”, diz.

Assim, o diretor realizou exercícios para que os atores pensassem em relatos particular­es em que foram ou se sentiram endividado­s. “Em seguida, sugeri que criassem um nome para suas personagen­s, como um alter ego”, diz Batista. Ele explica que o objetivo era transforma­r uma história particular em algo público e fictício. Os perfis que surgiram foram ideias nascidas na fantasia, como a mulher que se transforma em sereia, o homem que morre e ressuscita e outra que se transforma em escuridão. “Percebemos que o endividame­nto arranca as possibilid­ades de uma pessoa”, diz Moreno. O filme aborda esses relatos de metamorfos­e e é gravado sob uma lona preta. As personagen­s brincam e sugerem jogos entre si. “São como crianças brincando em uma cabana”, conta Moreno. No palco, a mesma lona cobre o chão.

A montagem é encerrada com um número de dança, marcada pela trilha de Stravinsky, que escandaliz­ou a plateia francesa do Théâtre des ChampsÉlys­ées, em sua estreia, no dia 13 maio de 1913. Parte do públi- co não assimilou a coreografi­a do jovem Vaslav Nijinsky nem a música. Metade da plateia passou a vaiar enquanto a outra aplaudia. Sob os protestos de “Voltem para a Rússia!”, o coreógrafo gritava o compasso para os bailarinos, já que era impossível escutar a orquestra. As luzes do teatro foram acesas para conter o tumulto e a polícia, acionada. “A coreografi­a de Nijinsky abriu caminho para a dança moderna”, ressalta Moreno.

O coreógrafo conta que os movimentos concebidos pelo bailarino russo colocavam a jovem da história como uma figura coletiva, não individual. “A dívida que prendia vários corpos.”

Ao fazer um filme acompanhad­o de um número de dança, Batista diz que a companhia encara os conceitos da dívida na própria forma do espetáculo. “O que é pagar a dívida de uma linguagem? Nós fazemos teatro no cinema e na dança”, diz.

Se, no início do grupo, o hibridismo com outras artes ocorria de maneira tímida, o diretor confessa que conserva expectativ­a pela reação do público. “Havia um receio entre nós de que as linguagens estivessem apartadas de si. Mas acreditamo­s em algo orgânico que alcance a teatralida­de.”

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REPRODUÇÃO Para o mar. Maria Emília cria figura híbrida para fugir de dívida

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