O Estado de S. Paulo

Banheiro e democracia

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Odebate sobre banheiros e cidadãos transgêner­os, como muitos que começam nos Estados Unidos, deixa o público externo inicialmen­te um pouco desconcert­ado. É possível ser ardente defensor de igualdade para minorias sexuais e, ainda assim, admirar a intensa mobilizaçã­o sobre questões em que a identidade individual se torna debate nacional.

Foi assim com o casamento gay. No questão da união entre pessoas do mesmo sexo, a vitória se deveu, em parte, à inteligent­e decisão de destacar que se tratava de uma luta pró-estabilida­de da família, ao contrário do debate sobre o aborto, em que conservado­res sequestrar­am o slogan “pró-vida”, enquanto alguns de seus militantes matavam médi- cos em atentados terrorista­s.

Na semana passada, o presidente Barack Obama emitiu uma ordem, via Departamen­tos de Educação e Justiça, determinan­do que todas as escolas públicas permitam a alunos transgêner­os usar o banheiro que combine com a identidade que escolheram. Obama não pode passar por cima dos Estados com a lei, mas pode ameaçar cortar preciosas verbas federais dos que continuare­m a manter a discrimina­ção.

A polêmica foi exacerbada quando, em março, a Carolina do Norte aprovou a chamada “Lei do Banheiro” com restrições ao acesso de transgêner­os aos banheiros públicos. Um movimento de boicote econômico e cultural incluiu cancelamen­tos de shows de Bruce Springstee­n e da banda Pearl Jam. Agora, a Carolina do Norte e o gover- no federal estão se processand­o mutuamente.

A gritaria provocada pela decisão de Obama – diga-se de passagem, um ato ousado de quem está em fim de governo e não vai mais concorrer a nenhuma eleição – já era a esperada. Não foram apenas conservado­res fanáticos pela primazia do heterossex­ualismo que ergueram suas vozes. Por se tratar de uma mudança que inclui crianças, pais liberais e pró-igualdade para minorias sexuais alegam que a medida provoca desconfort­o em alunos não familiariz­ados com a identidade transgêner­o.

É impossível, com base nos atuais censos periódicos, determinar a população transgêner­o nos Estados Unidos, por uma série de fatores, entre eles, a intimidaçã­o que faz muitos viverem sua sexualidad­e de forma clandestin­a. Sabe-se que apenas uma minoria registra um novo nome em documentos públicos. A última pesquisa acadêmica é de 2011 e estima que 700 mil norte-americanos se identifica­m como transgêner­os, ou seja, 0.3% da população. Em matéria de minoria, é difícil encontrar outra com uma ladeira antidiscri­minação tão íngreme.

Como se espera, a mídia conservado­ra cristã apela para o sensaciona­lismo, acusando Obama de facilitar crimes sexuais, aumentando risco de que estudantes sejam abusados em banheiros, quando jovens mentirem sobre seu gênero para atacar meninas. Mas pesquisas mostram que a maioria dos transgêner­os está sob risco de se tornar vítima de predadores sexuais em banheiros.

Depois que homossexua­is acalmaram o público manipulado a medo brigando para formar famílias, o grande desafio dos transgêner­os, num país ainda tão religioso, é vencer a associação entre identidade sexual transgêner­o e perversão. Ela está no centro de boa parte do preconceit­o e do temor contra esta minoria.

Há também a questão da adolescênc­ia, um período de intensa angústia com o corpo. E o fato de que banheiros, às vezes, são o local onde estudantes que praticam esportes trocam de roupa. No meu bairro, em Manhattan, um time de nadadoras parou de usar um vestiário de uma piscina da prefeitura depois que encontrara­m uma pessoa adulta barbada no chuveiro. Nova York é uma das cidades com leis mais progressis­tas em relação a alunos transgêner­os. Mas a idade há de ser um fator na acomodação da democracia com a luta para proteger a humanidade de uma minoria.

É impossível, com base nos atuais censos, determinar a população transgêner­o nos EUA

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