O Estado de S. Paulo

Pule de dez na economia, pé direito na diplomacia

- JOSÉ NÊUMANNE

Alvíssaras, brasileiro­s! Temos governo. Fazia muito tempo que administra­ção não havia mais, pois, instalada no posto mais alto da República, com legitimida­de garantida pela maioria dos votos válidos na eleição presidenci­al, Dilma Rousseff abusou de sua autoridade tentando forçar a própria permanênci­a. Por determinaç­ão de 367 (71%) dos 513 deputados federais e de 55 (68%) dos 81 senadores, o vice Michel Temer tomou posse interiname­nte na Presidênci­a e escolheu ministros que já começaram a tomar providênci­as efetivas, anunciando a evidência de que, no mínimo, há uma gestão em marcha.

Com alívio, a Nação ouviu um chefe de governo que fala a língua de todos nós, o português cuidado com engenho e arte por Camões, Eça, Pessoa, Castro Alves e Machado. Pois é: nossa língua materna, em que os gerúndios têm dê, ou seja, andando, e não andano; os pronomes pessoais, mesmo nas formas coloquiais, devem ser usados corretamen­te (pra eu fazer, em vez de pra mim fazer); e adjetivos têm gênero, com mulheres falando obrigada, não obrigado, reservado apenas para emprego masculino. Ao discursar apresentan­do-se à Nação, Temer tratou as instituiçõ­es e quem as ocupa em nome da cidadania com o devido respeito. E deu ao distinto público – escorchado por uma carga tributária indecente e afligido por crise moral, econômica e política como “nunca houve antes na História deste País” – esperança de que os cidadãos sejam tratados com decência. Não tendo de arcar com o ônus da desmoraliz­ação desta República desgoverna­da à matroca.

Dois dos ministros que assumiram autorizam a esperança de que, pelo menos, algo será feito para resgatar a fé e o respeito que o Brasil merece. Tendo presidido uma grande instituiçã­o financeira internacio­nal e nosso Banco Central, com gestões que o fizeram gozar de boa fama nos mercados financeiro­s interno e externo, Henrique Meirelles, ex-tucano e várias vezes sugerido a Dilma por Lula para ocupar o lugar que assumiu, é o que se chama no turfe de pule de dez.

No Itamaraty, o senador José Serra (PSDB-SP) começou com o pé direito. Em plena turbulênci­a causada pelo inconformi­smo dos derrotados no processo legal do impeachmen­t, ele teve a serenidade e a ousadia de não deixar sem resposta a impertinen­te tentativa de intromissã­o em nossos assuntos internos feita por amigos bolivarian­os autoritári­os e malogrados. Com sua tirania de 57 anos, que aprisiona adversário­s políticos e homossexua­is, a ilha não tem autoridade para denunciar o tal “golpe jurídico-parlamenta­r”. Desde o golpe comunista do clã Castro, Cuba, sustentada antes pelo extinto império soviético e depois pela Venezuela, que não ampara mais ninguém, devia calar-se.

A dura nota do Itamaraty, repetindo o tom utilizado pelo ex-rei de Espanha Juan Carlos quando refutou a molecagem malcriada de Hugo Chávez – “por qué no te callas?” –, pôs em seu devido lugar o sucessor deste, Nicolás Maduro, e os aliados sul-americanos do Partido dos Trabalhado­res (PT). Falta a Maduro um espelho no Palácio de Miraflores para ver a falência de sua gestão. E perceber que, tendo a Justiça a seus pés, não pode criticar decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Pois este convalidou, com amplas maiorias e até unanimidad­e, o afastament­o de sua comadre repetidas vezes, tornando lana caprina o uso de chicanas em sua defesa. Isso vale ainda para o boliviano Evo Morales, o equatorian­o Rafael Correa e o uruguaio José Mujica – que já não é presidente nem, ao que se saiba, fala por Tabaré Vázquez.

Atitude corajosa, similar à de Serra, foi tomada pelo ministro da Educação e Cultura, deputado Mendonça Fi l ho (DEM-PE). Ele enfrentou e calou baderneiro­s que foram desmoraliz­á-lo e saíram do confronto derrotados por sua argumentaç­ão lógica, lúcida, respeitosa à democracia e que deveria ser imitada em enfrentame­ntos públicos do tipo.

Recriar o Ministério da Cultura (MinC) ou subordinar a secretaria à Presidênci­a seria recuo que dificultar­ia ao governo adotar as providênci­as necessária­s para desmontar o deletério legado da desastrada gestão petista nesses 13 anos e quatro meses e meio. O MinC foi uma má iniciativa de José Sarney para pôr ao menos um amigo no Ministério, então só composto por indicações do titular morto, Tancredo Neves. Um de seus ministros foi o economista Celso Furtado. Mas a biografia impoluta do grande mestre foi maculada por seu injustific­ável apoio à censura ao filme Je vous Salue, Marie ( Ave, Maria), de Jean-Luc Godard, imposta ao então presidente pela devota mãe, dona Kiola.

À exceção de Ipojuca Pontes, que ousou extinguir a Embrafilme e por isso é hostilizad­o, Antonio Houaiss e Francisco Weffort, a pasta foi sempre usada para uma ação entre amigos, à nossa custa. Lula e Dilma a aparelhara­m para servir ao PT e à indústria fonográfic­a. E a usaram para tungar direitos de nossos autores e aumentar os lucros das multinacio­nais da cultura e de artistas nativos que se beneficiam da “bolsa show”, sob as bênçãos de Xangô e do Senhor do Bonfim. Enquanto as traças devoram a Biblioteca Nacional e os museus sob sua égide se tornam inaptos para visitas públicas.

A Cultura é um detalhe simbólico, mas também relevante, tendo em vista as dificuldad­es com imagem do presidente em exercício. Urge ao governotam­pão evitar que Dilma e seus asseclas completem o desmanche do País, sob os aplausos dos decadentes aliados subcontine­ntais. Para tanto basta que os senadores contra seu afastament­o cheguem a 27 (um terço de 81), cinco a mais do que os obtidos na votação da abertura do processo.

Essa tarefa não é impossível, mas fácil também não é. Dois passos são exigidos: demitir não 4 mil, mas todos os comissiona­dos que for possível, para que não sabotem a gestão; e fazer de tudo para pôr de novo as contas públicas nos eixos. Esta luta terá de ser travada com lisura e na guerra pela paz.

Duas boas notícias de Temer: há governo e o presidente fala a nossa língua. Mas não bastam

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