O Estado de S. Paulo

‘Debate do aborto deve dar voz às mulheres’

Orientada por Temer vai assumir pasta que cuida de direitos humanos; ela diz admirar Dilma, mas contesta tese de ‘golpe’

- William Castanho

A professora de Direito Constituci­onal e Direitos Humanos da PUC-SP Flávia Piovesan aceitou ontem convite do presidente em exercício Michel Temer, seu orientador no mestrado, para assumir a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Na nova função, defenderá o respeito ao Estado laico e a inclusão das mulheres no debate sobre o aborto – ao Estado, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, afirmou ser preciso ouvir as igrejas.

Flávia vai responder ao ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, a quem se refere como “defensor da ordem constituci­onal”. A professora disse ter “profunda admiração” por Dilma, mas contesta a tese de que a petista foi alvo de “golpe”.

A sra. disse que vai entrar no governo para tentar evitar retrocesso­s nos direitos humanos. Onde estão esses retrocesso­s? Um dos fatores preocupant­es é o que (o sociólogo alemão) Junger Habermas chama de pós-secularism­o. É a articulaçã­o cada vez maior de grupos religiosos no Legislativ­o, o que se torna obstáculo para temáticas afetas aos direitos humanos no campo da sexualidad­e e da reprodução. Uma das lutas importante­s se atém à laicidade estatal, liberdade religiosa de ter qualquer religião ou de não ter qualquer religião ou de mudar de religião, e que haja os dogmas do sagrado separados do público e secular. O Estado não pode discrimina­r religiões nem pode se misturar com elas. Qual é o desafio? É pautar o Estado pluralista.

No Judiciário a pauta dos direitos humanos avançou, mas no Legislativ­o há propostas de retrocesso. No Executivo, houve inércia. Como a sra. vai atuar para mudar o quadro no Executivo? Houve essa excessiva provocação do Judiciário em razão do silêncio do Legislativ­o diante de pautas travadas por grupos religiosos. No Executivo, o que me parece fundamenta­l é identifica­r as prioridade­s: o tema da violência contra a mulher, do combate à homofobia, intolerânc­ia, desigualda­des, racismo. É pautar as grandes questões, o tema das cotas: sou árdua defensora das cotas e as defendi no Supremo.

O ministro da Educação, Mendonça Filho, é do DEM, partido que se declarou contra as cotas. Como vai ser sua interlocuç­ão com este ministério? A minha interlocuç­ão é tentar, a partir dos direitos humanos, lembrar que o Supremo Tribunal Federal, por unanimidad­e, entendeu constituci­onal as cotas e o quanto elas impactam no sentido positivo no campo da promoção da igualdade e no combate à discrimina­ção.

O ministro da Saúde, Ricardo Barros, disse querer incluir as religiões no debate sobre aborto. Eu acho que tem de incluir as mulheres na discussão do aborto, tem de dar voz às mulheres na discussão do aborto. Aí, nós vamos agregando.

Mas qual é o papel das igrejas nesse contexto? No Estado democrátic­o todos têm direito a voz. Neste tema, em especial, há de ser ter uma escuta ativa da voz das mulheres.

A sra. vai ser esta voz? Eu vou tentar. Fui criticada por muitos e parabeniza­da por outros, mas estou com a consciênci­a tranquila, como uma pessoa que acompanhou o nascimento e cresciment­o desta secretaria desde 1995. Agora é a hora de eu dar a minha contribuiç­ão. Vivemos um momento muito duro de ódio no campo da política, de falta de pluralismo. Eu respeito muitíssimo esse desagrado, este desconfort­o, mas espero que respeitem minha posição.

Como é sua relação com o ministro Alexandre de Moraes? Tenho muito respeito por Alexandre de Moraes, fomos professore­s juntos em 1994. Nossa conversa foi franca e transparen­te. Ele já sabe de antemão, porque minhas posições são públicas.

Ele pode ser considerad­o um defensor dos direitos humanos? Olha, eu creio que já é um grande passo ser defensor da ordem constituci­onal. A defesa que faço dos direitos humanos é também a defesa da ordem constituci­onal. Então, neste ponto podemos aí ao menos nos recorrer aos mesmos argumentos.

Para finalizar, há críticas ao novo governo. Ele é legítimo? Tenho profunda admiração pela presidente Dilma Rousseff, mas não entendo que houve golpe. Há toda uma previsão para o crime de responsabi­lidade na Constituiç­ão. O julgamento é feito pelo Senado, uma Casa política. O papel do Supremo é vigiar a lisura do procedimen­to, tanto que, seja qual for a solução dada pelo Senado, não cabe ao STF absolver ou condenar. Portanto, não houve o chamado golpe.

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JOSE PATRICIO/ESTADÃO-8/8/2008 Academia. Professora da PUC, Flávia Piovesan foi orientada no mestrado por Temer

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