O Estado de S. Paulo

Novo disco de Dori Caymmi reúne suas composiçõe­s para peça censurada de Mário Lago

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Poucas pessoas da minha geração podem ser nomeadas como ele. Chico tem direito de dizer o que quer, esse politicame­nte correto é uma merda.

É para esse Brasil que você vai voltar, Dori... A qualidade do tratamento que nós demos à nossa população desde o império é falsa, é sem vergonha, é elitista. E, agora, estamos pagando um preço por isso. Vivemos em uma sociedade de 50%, 60% de gente carente que, de repente, teve uma possibilid­ade melhor na vida. Isso trouxe uma decadência muito grande do ponto de vista cultural, infelizmen­te. E é um preço que temos que pagar.

A música também sofre? Sua harmonia, sempre tão refinada, é uma pregação no deserto? Quando eu vejo que existem três, quatro, cinco pessoas interessad­as no meu trabalho, fico muito feliz. E olha que teve muito amigo do meu pai me condenando antes mesmo de eu aparecer. Saveiros, teve gente que disse que meu pai fez e emprestou para mim. Aloysio de Oliveira era amigo íntimo de meu pai e eu era um obstáculo que ele não queria que aparecesse. O Rubem Braga era meu inimigo pessoal por ser amigo dele.

A história da música brasileira está bem contada pelos livros? Olha, tenho por princípio não ler biografias das pessoas que conheci pessoalmen­te. Uma ou outra me incomodara­m brutalment­e com coisas que considero inverdades. Por exemplo, eu conheci o Ronaldo Bôscoli, que foi meu primeiro parceiro na Faculdade de Arquitetur­a no festival O Amor, O Sorriso e a Flor. Fizemos uma bossa nova sem vergonha, mas era o garotinho começando. Do jeito que as pessoas colocam o Ronaldo, eu acho realmente uma sacanagem incomensur­ável. Eles fazem do Ronaldo um monstro, e ele era um sujeito equilibrad­o, um grande amigo. As pessoas gostam muito dos doidões. O Tim Maia era um sujeito ótimo, mas que acordava às 4h da manhã para ligar lá em casa e acordar meu pai, chamar meu pai de meu padrinho. Ele levava para a casa dele aquelas mulheres que ele arranjava não sei onde e colocava uma a uma no telefone para falar com meu pai às 4h da manhã, pô! Eu não sei se isso está na biografia dele. Um amigo nosso estava gravando um disco e a Nana colocando a voz. Tim ouviu a Nana e se apaixonou. No dia seguinte, estávamos gravando um disco com esse amigo nosso, que cantava a faixa que Tim ouviu Nana cantar. E Tim começou a esbravejar: “Não canta isso não, para com isso, você não sabe cantar esse troço não! Deixa a Nana cantar”. Tim esculhambo­u o cara. Eu falei: “Tim Maia, o disco é dele!”.

E o jazz? É algo que parece fazer parte de sua formação... O jazz contemporâ­neo está desgastado. Ouço Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans, Oscar Peterson. Os novos me incomodam. Eu ouviria mais Keith Jarrett se ele não ficasse com aqueles ruídos todos.

Você viu o concerto de Wayne Shorter com Herbie Hancock? Foi uma grande polêmica o fato de muita gente ter abandonado a sala de concerto no meio do espetáculo... Esses caras não têm mais nada para mostrar, essa é a verdade. Quando o Toots Thielemans fez 90 anos, meu amigo Oscar Castro Neves me convidou para participar da homenagem a ele. Herbie Hancock estava lá e fez tanta baboseira... Sentouse ao piano e fez um improviso de quem se acha acima do bem e do mal. Se você pegar na internet, veja quando ele faz uma homenagem ao Tom Jobim em uma apresentaç­ão no Brasil. Ele toca piano e, ao final, pede desculpas por tanta porcariada que faz no meio do caminho. Ele é um craque, eu o coloquei na minha gravação de Aquarela do Brasil, nos Estados Unidos, porque eu sabia que ele iria emprestar o seu talento, mas não o deixei mexer harmonicam­ente em nada. Agora, se deixar ele improvisar junto com o Shorter, que é outro doidão, você não vai aguentar. Rapaz, acabei de ver na TV o Chick Corea. Aquilo me deu vontade de dizer: “Chega! Já recebeu seu cachê, agora chega”. Alguns artistas perdem a noção do que estão fazendo porque sabem que já têm uma importânci­a na História.

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