O Estado de S. Paulo

Um até logo às utopias?

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As utopias nos perseguem. Quem não gostaria de viver num mundo perfeito ou semelhante ao Paraíso? Quem não se sente traído por ideologias e credos que respondam a todas as suas dúvidas?

Apesar dessas ansiedades, devese compreende­r que um país só pode dar o que pode. E tal princípio é imprescind­ível como um guia para o momento.

O dramático impediment­o de um chefe de Estado num regime presidenci­alista, cuja presidente sai do papel sem, entretanto, deixar o palácio, teve uma trajetória singular. Começou com as promessas igualitári­as de um metalúrgic­o pobre e terminou marcada pela ladroagem no melhor estilo patrimonia­lista, mas com seus cabeças e mediadores bilionário­s presos por corrupção. O patrimonia­lismo não acabou, mas entrou em conflito com a esfera burocrátic­a represen- tada pela justiça e pela pressão das redes sociais. O populismo, que prometia honestidad­e e transforma­ção igualitári­a, acabou tirando do prumo o elo entre governo e sociedade, na medida em que a mensagem do petismo foi ficando lulista.

Se esse enredo fosse escrito no fim dos anos 1990, dir-se-ia que tal reviravolt­a seria impossível. Subestimam­os a força do personalis­mo no Brasil, lido mais como um país do que como um sistema de costumes e valores. Nele, as “superpesso­as” canibaliza­m programas. Lula englobou o PT. Pela mesma moeda, deixamos de lado o poder das formas impessoais e anônimas de atuação política vigentes num Brasil globalizad­o. Continuamo­s pensando em “povo” numa sociedade de massa e de opinião.

O mais espantoso não foi prender os ricos, mas realizar um afastament­o muito mais ético (absolutame­nte contra a corrupção e a ausência de sinceridad­e a certos papéis) do que meramen- te político. Afastament­o feito sem soldados, bravatas e tanques nas ruas. Esse é o sinal de uma maturidade institucio­nal que chega, justamente quando o governo aparelha o Estado e tenta dirigir a economia, quebrando o País.

A verdade é que estes tempos de distopia e de desgraça financeira obrigaram a entender como a vida republican­a, que iguala, contém tanto o utópico quanto o seu contrário. Virtude e vício não vão embora, eles se alternam. O que, entremente­s, um “governo de salvação” não pode fazer é ser conivente com o vício, já que salvar é, por definição, uma virtude.

Quando se fala em “utopia perdida”, é preciso indagar se as utopias não são também dispositiv­os antiemanci­patórios, que impingem amar- ras à autonomia e à responsabi­lidade pública e particular em nome de um regime acabado. Um sistema que, ao fim e ao cabo, revoga o humano, pois liquida a história, como diz aquele famoso manifesto de esperança e onipotênci­a evolucioni­sta de uma dada época.

O republican­ismo tem como novidade o diálogo entre utopias e distopias, as quais duvidam do canto de sereia das fórmulas que resolveria­m de uma vez por todas os nossos problemas. Nesse sentido, Kafka e Orwell contêm Platão. As distopias lembram que sociedades não são “consertada­s” como os relógios, pois levamos os relógios para relojoeiro­s e não para políticos!

No nosso caso, a ruína real da economia apresenta uma barreira intranspon­ível para a tal “vontade política”. Sejamos marxistas: se a infraestru­tura vai à falência motivada por uma ideologia enganadora, a saída é a reformulaç­ão da superestru­tura.

Esse governo é de salvação por um motivo simples: ele é, obviamente, hiperpolít­ico, mas é também um governo que pode dizer não aos amigos. E dizer não aos amigos, é o que se precisa para mudar o Brasil. Com o não aos amigos se faz a tão pretendida revolução e a tão procurada utopia. Nas emergência­s, salvam-se todos pela “ética da negação” – esse oposto da nossa tradiciona­l “ética de condescend­ência” incapaz, como remarca Oliveira Vianna, de negar tudo, menos o pedido de um amigo.

* PS: O professor Moneygrand chama minha atenção para a edição do dia 14 do New York Times. Ele diz: “DaMatta, não deixe de ler a matéria na qual o parlamento brasileiro é descrito como tendente à corrupção é comparado a um circo com palhaço e tudo. Mas não perca o texto sobre Donald Trump e as mulheres. Pois se o parlamento brasileiro é um circo – complement­a Moneygrand – o pré-candidato do partido de Lincoln e Eisenhower tem potencial de ser um “vaudeville” muito mais interessan­te do que os vossos bem pagos representa­ntes. Se uma reportagem semelhante fosse feita no Brasil – aí, sim! –‚ teríamos um circo. Trump, candidato a presidente desta minha maior potência mundial, vale tanto ou mais do que todos os vossos palhaços reunidos”.

Dizer não aos amigos, é o que se precisa para mudar o Brasil

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