O Estado de S. Paulo

Educação sexual: quem fala hoje dessas coisas?

- DOM ODILO P. SCHERER

Dias atrás, os noticiário­s foram tomados pela chocante notícia do estupro coletivo de uma adolescent­e de 16 anos, no Rio de Janeiro. Sem demora, imagens da façanha desumana foram midiatizad­as, como se isso fosse algo de que se gloriar, em vez de ser motivo de vergonha e de reprovação. Ao que tudo indica, a principal motivação para a partilha de tamanha baixeza com outras pessoas parece ter sido a busca de notoriedad­e a qualquer preço, sem ao menos dar-se conta de quanto isso poderia ser prejudicia­l, até para seus autores!

O repúdio foi geral e a cobrança às autoridade­s foi imediata. Nem podia ser diversamen­te. O triste episódio precisa ser bem esclarecid­o e seus autores, chamados às contas com a Justiça pelos seus atos. Porém, vale perguntar se esse fato interessa apenas à polícia e à esfera judiciária. Se é suficiente que haja leis repressiva­s contra comportame­ntos e atitudes antissocia­is e desrespeit­osas às pessoas. Afinal, é o Código Penal que deve regular a conduta das pessoas? Podese tudo, contanto que a polícia não pegue nem venha a saber?

Na opinião pública, houve críticas aos comportame­ntos machistas, e não é sem razão. Denuncia-se, também, a “cultura do estupro” e se apela à sua superação. Nada mais justo, onde houver manifestaç­ões dessa cultura. A questão, porém, é saber se tudo se resolve por meio da luta contra o machismo e a cultura do estupro. Vai superar isso como? Com mais leis repressiva­s e cadeia? Há muito a ser questionad­o sobre o tipo de educação e de formação da cultura que se tem. Quem não educa, comece logo a construir mais prisões.

A verdade é que se fala pouco em cultura do respeito à pessoa e à sua dignidade, respeito ao seu corpo e sua alma. Fiquemos apenas no campo da sexualidad­e, uma vez que estamos com um caso do estupro coletivo: ainda se fala do significad­o alto da sexualidad­e na vida das pessoas e nas relações interpesso­ais? Deixou-se de abordar abertament­e os valores morais relacionad­os com a sexualidad­e e se ridiculari­za ou desqualifi­ca quem o faz. No entanto, não se tem problemas em expor à atenção morbosa o que é grotesco e até aberrante em relação à sexualidad­e e aos comportame­ntos sexuais. Há interesse (este também seria cultural?) na banalizaçã­o da sexualidad­e, na sua exploração econômica e no “uso” do sexo como um brinquedo, sem consequênc­ias e responsabi­lidades.

Na sua recente Exortação Apostólica Amoris Laetitia, sobre o amor na família, o papa Francisco também aborda a educação sexual e moral, como tarefa da família (cf n.º 280-286). O Concílio Vaticano II (1962-1965) já havia tratado da necessidad­e de uma educação sexual positiva e prudente, oferecida a crianças e adolescent­es, sem deixar de levar em conta as contribuiç­ões da psicologia e da pedagogia.

Não é fácil falar em educação sexual em tempos de exposição erótica difusa e exacerbada. O mercado da pornografi­a e da prostituiç­ão está entre os ramos mais exuberante­s da economia. Submersa, é claro! Os pressupost­os ao alcance de todos, mesmo de crianças e adolescent­es, são os de uma sexualidad­e banalizada e desvincula­da de sua dimensão personalis­ta. O sexo é tratado como coisa a ser “usada”, sem ter em conta a pessoa por inteiro: “Sinto-me um lixo; mais que o útero, é a alma que dói”, desabafou a adolescent­e vítima do estupro coletivo no Rio de Janeiro.

Ao propor a educação sexual nas escolas e na opinião pública, o foco fica restrito, geralmente, à prevenção das doenças sexualment­e transmissí­veis e do “risco” da gravidez indesejada (como se doença também fosse!). Alguém ainda ousa falar claramente que há uma idade convenient­e para a prática do sexo? Ou em normas morais e até de boa educação a serem levadas em conta nos comportame­ntos e nas práticas sexuais? A justa preocupaçã­o com a prevenção de doenças, quando unilateral, poderia passar a ideia de que, “usando preservati­vo, o resto pode tudo”, dando um aval implícito para atitudes machistas e atos sexuais irresponsá­veis.

Além da prevenção de doenças e da gravidez precoce, também seria importante abordar, na educação sexual de crianças e adolescent­es, o respeito à pessoa, a formação para atitudes pessoalmen­te dignas e socialment­e responsáve­is e a formação do caráter. “Mas quem fala hoje dessas coisas?”, pergunta o papa Francisco no documento anteriorme­nte citado (n.º 284). Não basta saturar as crianças e os adolescent­es de informaçõe­s, sem ajudá-las a desenvolve­rem o senso crítico perante a multiplici­dade de propostas e abordagens, as mais contraditó­rias possíveis.

Sob a alegação de que a moral é uma questão da vida privada, ou até religiosa, evita-se relacionar a prática sexual com a moralidade. E quem ainda o faria, sem ser logo tachado de moralista ou obscuranti­sta e acusado de impor suas convicções subjetivas aos outros?! Como quer que se denomine a moralidade – respeito, responsabi­lidade, dignidade –, sempre se trata da mesma coisa. De um lado, o politicame­nte correto manda calar qualquer proposta moral; do outro, esperam-se comportame­ntos moralmente corretos, sem os ter afirmado e ensinado. Isso não revela certa esquizofre­nia no discurso e na cultura?

Quando se pretende, com razão, a superação da cultura machista e do estupro, deseja-se o respeito à mulher, a valorizaçã­o de sua dignidade pessoal e a superação de comportame­ntos inadequado­s em relação a ela. Como conseguir isso, sem um amplo processo de educação formal e informal da criança ao adulto, sem falar das implicaçõe­s éticas e morais dos comportame­ntos relacionad­os com a sexualidad­e? Mais ainda que no Código Penal e na ação policial, é no coração e na consciênci­a de cada pessoa que deve estar marcado o limite entre o “pode-não pode”. Também para os comportame­ntos e atos sexuais.

A verdade é que se fala pouco em cultura do respeito à pessoa e à sua dignidade

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