Muhammad Ali
Muhammad Ali nasceu Cassius Marcellus Clay em uma família cristã de Louisville, em Kentucky – o pai era pintor de letreiros e frequentava a Igreja Metodista, mas aceitou que a mulher, empregada doméstica, batizasse os filhos na Igreja Batista. A conversão ao Islã (ou reversão, como usado por muçulmanos) não foi um ato de fé, mas político; parte de um movimento ao qual uma geração de negros americanos aderiu. A trajetória de Ali, como a de Malcom X e muitos ativistas do movimento por direitos civis nos anos 60 nos EUA, nos dá pistas do que pode levar hoje milhares de jovens a abraçar o Islã como religião.
Cassius cresceu em um tempo em que os negros não tinham permissão para usar o mesmo banheiro dos brancos, sentar-se no mesmo banco no ônibus e frequentar a mesma escola – Ali tinha 12 anos quando a Suprema Corte americana aprovou, em 1954, a lei que acabaria com a segregação racial na rede pública de ensino, decisão ignorada por instituições de ensino privadas, principalmente no sul do país.
No início, as mudanças legais que tentavam corrigir a segregação provocaram, em lugar da integração entre brancos e negros, a explosão da violência e do racismo. O movimento por Direitos Civis, que começou no Alabama, em 1965, foi brutalmente combatido pela polícia e acompanhado do ressurgimento de grupos supremacistas brancos. Inte- grantes do Ku Klux Klan, com origem um século antes, reacenderam suas cruzes e, bíblias em punho, promoveram uma nova onda de ataques que aterrorizou comunidades negras nos EUA.
O ódio racial continuava relegando os negros aos porões da sociedade. Para muitos, era impossível desassociá-lo da religião. Cem anos antes, os escravocratas impuseram o cristianismo nas senzalas, proibindo crenças nativas africanas e oIslã (ao menos 10% dos escravos nos EUA vinham do oeste africano muçulmano).
Os anos 1960 viram os primeiros negros chegarem ao ensino superior (James Meredith, na Universidade do Mississipi) e à Suprema Corte (Thurgood Marshalle, primeiro juiz negro dos EUA, que assumiu o posto em 1967) e, ao mesmo tempo, os mais brutais ataques contra negros, como o assassinato de três jovens ativistas, pela Ku Klux Klan no Mississippi (crime que inspirou o filme Mississippi em Chamas), em junho de 1964.
Cassius Clay foi influenciado por Malcolm X, então o mais proeminente integrante de um grupo radical chamado Nação do Islã, que defendia a supremacia negra. No dia em que Clay disputaria o cinturão dos pesos pesados contra o americano Sonny Liston, Malcolm X, para quem a luta representava “a Cruz e o Crescente no ringue pela primeira vez”, visitou-o no vestiário. Voltados para Meca, eles oraram juntos.
Aquele foi o primeiro título mundial de Clay e sua última luta com o “nome de escravo”. No dia seguinte, ele anunciou publicamente a conversão ao Islã e, pouco depois, assumiu-se como Muhammad Ali. Ele justificou sua decisão e a aliança com a Nação do Islã dizendo querer a paz que não encontrava na integração entre negros e brancos nos EUA.
Sua conversão foi vista como ameaça aos valores cristãos. A imprensa americana se recusava a tratá-lo pelo nome muçulmano. Jimmy Cannon, comentarista esportivo da época, acusou-o de transformar o boxe em um “instrumento de ódio”. Floyd Patterson, lutador e católico fervoroso, chamou-o de antiamericano.
Em outubro de 1965, Patterson desafiou Ali a lutar, em artigo publicado na Sports Illustrated, em que prometia “salvar o esporte” da “escória dos negros mu- çulmanos”. Seis semanas depois, em Las Vegas, ele perdeu a luta para Ali, que movimentava-se no ringue gritando: “Vem, branco americano!”
Para Richard Reddie, autor do livro Black Muslims in Britain, o Islã passou a servir de “inspiração e força” para negros que não se sentiam parte da sociedade “materialista e corrompida”. Converter-se passou a ser um ato de resistência ao domínio econômico, social e cultural dos brancos.
O conflito entre Islã e cristianismo, moldado pelo racismo, continua latente. O Islã é uma religião pacífica. Mas o ódio e a segregação de que muitos jovens nas periferias hoje são vítimas servem de combustível para extremistas. Eles exploram a fragilidade econômica, social, emocional para cooptar os que, como os negros americanos dos anos 1960 (e até hoje), não se sentem integrados à sociedade, sob o discurso de que a fonte da opressão de pobres, imigrantes, negros e muçulmanos é a mesma: o Ocidente e seu estilo de vida corrompido, a exemplo do movimento que levou muitos negros a se converterem nos 1960.