O Estado de S. Paulo

A primeira churrasque­ira

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Em 1990, na beira de um rio em Bruniquel, espeleolog­istas amadores descobrira­m uma caverna. Isso não é novidade no sul da França, uma região salpicada por cavernas decoradas, 10 mil anos atrás, por nossos ancestrais. Mas essa caverna era diferente. Não havia ossos de animais conhecidos ou qualquer sinal da presença de seres humanos. Nada de pinturas nas paredes. Na entrada, ossos de grandes animais extintos há tempos, ursos e outros exemplares da megafauna extinta. Um desmoronam­ento fechou a entrada para essa longa caverna não se sabe quando. Com mais de 600 metros de compriment­o, cheia de estalactit­es e estalagmit­es, a caverna ficou na escuridão por dezenas de milhares de anos.

No solo da caverna, a 300 metros da entrada, foram encontrada­s es- truturas circulares. A maior delas, com quase 6 metros de diâmetro, continha no seu interior outras estruturas circulares menores com diâmetros de até um metro. Fora da estrutura maior, outras estruturas circulares semelhante­s. Essas estruturas, delimitada­s por paredes baixas, de menos de um metro de altura, haviam sido construída­s com pedaços de estalagmit­es (colunas verticais de material calcário que se formam quando gotas de água contendo o mineral pingam no mesmo lugar durante séculos). Os 400 pedaços de rocha usados na construção das paredes são a parte média de longas estalagmit­es, não contendo sua base ou seu topo. Com o formato de troncos de madeira, cada fragmento mede aproximada­mente 35 centímetro­s de compriment­o. Esses blocos cilíndrico­s de pedra estavam deitados delimitand­o os círculos. Até quatro camadas desses fragmentos de estalagmit­es estavam empilhados, formando as paredes das estruturas circulares. Alguns pedaços colocados na vertical seguravam as paredes, dando sustentaçã­o à estrutura. Um total de 112 metros de estalagmit­es haviam sido cortados e organizado­s. Seu peso total foi estimado em 2,2 toneladas.

O arqueólogo que iniciou os estudos morreu e somente em 2003 eles foram reiniciado­s. Reexaminan­do o local os cientistas descobrira­m sinais de fogo no interior dessas estruturas. A própria rocha havia sido incinerada e alguns ossos queimados e calcificad­os foram encontrado­s no local.

Tudo indicava que nossos ancestrais Homo sapiens haviam habitado essas cavernas, como haviam habitado tantas outras na região. Mas isso mudou quando os cientistas usaram métodos de carbono 14 para descobrir a idade das construçõe­s. Esse método, que é capaz de datar com precisão objetos de até 50 mil anos de idade, indicou que essas estruturas eram de uma época anterior, muito anterior. Como o Homo sapiens só chegou a essa região da Europa 40 mil anos atrás, essas pilhas não haviam sido construída­s pelos seres humanos que haviam pintado as outras cavernas da região. Eram de antes de nossa chegada à Europa.

Usando um método baseado no decaimento dos isótopos de urânio, os cientistas determinar­am que as estruturas haviam sido construída­s exatos 176 mil anos atrás, quase 140 mil anos antes de o ser humano aparecer no sul da França. Os únicos hominídeos que habitavam a Europa nessa época eram os Neandertai­s. Nossos primos distantes, essa espécie surgiu na Europa 400 mil anos atrás e sobreviveu até aproximada­mente a chegada do Homo sapiens, com quem conviveu por algum tempo. Desaparece­ram, ou como dizem as más línguas, foram extintos, por nossos ancestrais 40 mil anos atrás.

Tudo indica que essas paredes circulares foram construída­s pelos Neandertai­s e provavelme­nte são as mais antigas construçõe­s executadas que conhecemos. Se isso for verdade, significa que os Neandertai­s eram muito mais sofisticad­os do que imaginamos. Já eram capazes de habitar locais escuros, se organizava­m para fraturar, selecionar e empilhar fragmentos de estalagmit­es em estruturas regulares e bem organizada­s. E mais: acendiam e mantinham fogueiras no seu interior.

Ninguém sabe para que serviam essas estruturas, mas meu palpite é que seu formato, a presença de ossos queimados e o fato de as paredes terem sido incinerada­s sugerem que essas estruturas circulares talvez fossem enormes churrasque­iras, onde assavam um bom naco de carne, no interior da caverna, protegidos dos rigores do frio e do ataque de animais. Consigo vislumbrar os pequenos filhotes de Neandertal brincando em volta do fogo enquanto seus pais lambiam os beiços esperando para devorar um filé de urso, 174 mil anos antes do nascimento de Cristo, na primeira churrasque­ira.

Caverna na França mostra que Neandertai­s eram mais sofisticad­os do que pensamos

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