Gilberto Gil sem voz, no sax de Mauro Senise
Músico carioca lança ‘Amor Até o Fim’ redimensionando a obra do compositor baiano ao dissecar apenas o som de 13 canções emblemáticas
A obra de Gilberto Gil ganha dimensão instrumental e jazzística no disco Amor Até o Fim, que o saxofonista Mauro Senise acaba de lançar. Gil fez sua glorificação na voz, criando suas maravilhas dentro de um processo de composição no qual poesia e melodia se tornaram quase que indissociáveis. Pode ser esse um dos motivos que fazem sua obra não ser mais visitada por intérpretes do mundo instrumental e sinfônico. A outra razão pode ser por força do preconceito. É difícil acreditar, mas alguns generais de dez estrelas não consideram obras de artistas, essencialmente populares e que não sabem ler partituras, dignas de revisitações avançadas.
Senise disseca o Gil músico quando extrai dele apenas o som. Ao contrário do complexo pensamento harmônico de Edu Lobo, revisitado por Senise no disco Casa Forte, de 2006, Gil atua com a simplicidade transformadora que carrega de Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi. Simples até o pulo do gato. Suas cartas na manga aparecem ao acaso, não na concepção. Enquanto Edu ergue um monumento de tijolos encaixados, seguindo um projeto arquitetônico, Gil constrói uma cabana de palha que, de repente, se torna um castelo.
Sua linguagem sai, assim, por força da natureza, não do estudo. E, assim, chega onde nem todo o estudo pode chegar. É o que mostra Senise, com um caráter musical intacto ao servir a obra de Gil sem querer sobrepor-se a ela. Em entrevista ao Estado, osaxofonista de 66 anos diz que só o tempo faz com que um músico passe a escolher a nota certa, aquela que pode ser segura por vários compassos sem se chocar com ninguém. “É como ir à feira. Quando jovens, queremos todas as maçãs da barraca. Compramos sem nem olhar para elas. Com o tempo, procuramos umaou duas dentre as mais saborosas.”
O sax de Senise tocando Gil é limpo e silencioso em canções (que sem letras viram baladas), mas não cai no mecanicismo que o ameaça quando interpreta, por exemplo, Procissão. Antes que o improviso deixe os músicos se banharem nas delícias do Rio São Francisco, ele tem de passar por uma linha melódica de quase uma nota só. É ali que a alma fica ou vai embora. É quando a repetição da mesma nota não pode soar repetição, mas única, cada nota.
As harmonias chegam diferentes, como quase único ponto de criação livre permitida em um projeto que mexe com peças tão cristalizadas. E dois tipos de Gil se alternam.
Drão ganha um lirismo na introdução do piano de Cristóvão Bastos que Gil pouco usa. Coloca a melodia nas alturas com os climas do baterista Ricardo Costa e muda o tempo, tropegando charmoso no sete por quatro. Na seguinte, volta o Gil da farra com Ladeira da Preguiça, com Adriano Souza no comando agora do piano e dos arranjos.
Gil aparece na declamação de Preciso Aprender a Ser Só. Um acerto escrito por linhas tortas. Ele estava no Rio, prestes a sair em turnê, quando teve o convite de Senise. Fez no próprio estúdio a declamação e mandou ao saxofonista. Sua fala, mesmo sem cantar, inverte o jogo. Aqui, ouvimos apenas a voz, a poesia e a dor de Gilberto Gil.