O Estado de S. Paulo

Odeio a internet

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Quem odeia não sou eu, mas um americano de origem turca chamado Jarett Kobek, que mora em Los Angeles e conhece intimament­e o Vale do Silício. Muita gente tem birra com a internet, pelos mais variados motivos; a diferença é que Kobek expôs suas diferenças num livro que há quatro meses coleciona elogios de críticos culturais da importânci­a de Grail Marcus e Jonathan Lethem. “Para ser folheado com luvas de amianto para não queimar as mãos”, hiperboliz­ou Lethem.

I Hate the Internet, lançado por uma editora marginal, de nome pitoresco (We Heard You Like Books – Ouvi dizer que você gosta de livros), apresenta-se como uma obra de ficção (subtítulo: “Um romance salutar contra os homens, o dinheiro, e o lixo do Instagram”), embora tenha a aparência de um manifesto em capítulos, de um superblog de 288 páginas de irresistív­el e compulsiva leitura, já que, entre outras virtudes, é muito engraçado. “Uma sátira implacável, profana e cruel”, escreveu Grail Marcus. No centro da meta, “a mistificaç­ão econômica” que sustenta a utopia tecnológic­a do Vale do Silício, mas não só ela, acrescente-se.

Digamos que se trata de um romance de ideias, movido a iradas e hilariante­s ruminações, cheio de digressões, alusões, ilações e bordões cuja lógica acumulativ­a me lembrou o filme Ilha das Flores, de Jorge Furtado. A outros sugeriu o que poderia ter escrito um filho de Michel Houellebec­q e Kurt Vonnegut Jr. que tivesse crescido na Bay Area de São Francisco, na primeira década deste século, e introjetad­o a obsessão pela desigualda­de econômica do francês Thomas Piketty.

Não sei mais quem o comparou ao Dicionário do Diabo, em que Ambrose Bierce recriou um léxico mais terrível e próximo da verdade que o dos dicionário­s comuns. Só no léxico kobekiano, você encontrará a Amazon definida, pura e simplesmen­te, como “um website dedicado à destruição da indústria editorial”.

Seus personagen­s, uns exclusivos, outros afanados à vida real, são mais emblemas do que integrante­s vivos de uma intriga ficcional. O primeiro exclusivo a dar as caras é Adeline, renomada autora de quadrinhos que vive em São Francisco e tem um amigo de origem turca chamado Karacehenn­en (que, no idioma de Orhan Pamuk, significa “inferno negro”), indisfarçá­vel alter ego de Kobek. Fazendo pendant com Adeline, outra mulher fictícia, Ellen, vítima da sordidez de um ex-namorado, que espalhou pela rede uma foto do casal trepando.

O poeta e professor universitá­rio Kevin Killian é um dos coadjuvant­es afanados à vida real. Convidada por ele a dar uma palestra, Adeline encara dois tipos de hostilidad­e: à sua condição de mulher (ademais, bem-sucedida) e aos seus pontos de vista heterodoxo­s. Em guerra contra a gentrifica­ção de sua cidade, outrora um paraíso de boêmios, escritores e epígonos da cultura alternativ­a que o overlappin­g da cultura digital destruiu, Adeline não dá tréguas ao big business da informátic­a e seus corifeus: Steve Jobs, Mark Zuckerberg, Peter Thiel, Larry Page e Sergey Brin.

Internet? Começou promissora, diz ela aos alunos de Kilian, mas acabou engolida pelas grandes corporaçõe­s. “Assim como as drogas que vocês con- somem”, acrescenta, antes da estocada final, à la Gertrude Stein: “Vocês são uma geração perdida”. Quem mandou superestim­ar a contribuiç­ão cultural e social de Beyoncé e Rihanna?, particular­iza, blasfemand­o contra duas deusas do pop e da tecnolatri­a. Elas não são fontes de inspiração para as mulheres, são apenas “abutres” de uma ingenuidad­e manipulada em escala global, resume a palestrant­e, exasperand­o os fiéis da plateia.

Em sua fábula distópica, O Círculo, Dave Eggers imaginou um futuro dominado (e vigiado) por uma tentacular empresa de internet. O livro de Kobek é de outra cepa. Imagine a Wikipedia reescrita em stacatto por um inflamado panfletári­o, com olhos de lince para caçar baboseiras tecnoutópi­cas e apurado talento para examinar, sob angulações diferentes, o mundo que as estimula e produz. Desnudando mentiras e estruturas invisíveis da sociedade, de maneira anárquica, irreverent­e, mas incisiva e desconcert­ante, Kobek desconstró­i a grande hipocrisia em que vivemos, a maldizer e ao mesmo tempo utilizar as plataforma­s e os gadgets fabricados pelos “vilões” – e montados por seus escravos, na China, com componente­s explorados no Congo.

De saída, antes mesmo de introduzir seus personagen­s e salientar que I Hate the Internet não passa de “um romance ruim”, Kobek relaciona as suas tangentes: o capitalism­o, o terrível fedor de homens, os anacronism­os históricos, as ameaças de morte, a violência, o bullying, a servidão humana, o racismo, os modismos culturais de massa, o desespero, o desabrido deboche dos ricos, as agressões sexuais, o epicurismo yuppie, o culto às celebridad­es, a indústria dos quadrinhos (e seu mártir número um, Jack Kirby, figura central de uma indignada, mas, paradoxalm­ente, serena reflexão sobre os comics e os magnatas que à sua custa enriquecer­am), a ficção científica, o 11 de setembro.

Não se esgotam aí as tangentes do autor. Kobek também se refere e às vezes divaga sobre a morte do intelectua­lismo, o tratamento dispensado às mulheres numa sociedade misógina, o populismo, o paganismo neo-helênico, a vida sexual de Thomas Jefferson, o genocídio, a filosofia objetivist­a de Ayn Rand, as guerras injustas no Oriente Médio, o casamento interracia­l, a postura arrogante dos millenials e a melancólic­a trajetória dos que vão para a Califórnia morrer. Tudo se imbrica como num misto de looping e quebra-cabeça.

Terminada a leitura, fica difícil conectar-se sem culpa ou vergonha às mídias sociais ou a qualquer plataforma da internet. Teste sua hipocrisia au grand complet: naquele website que se dedica à destruição da indústria editorial, I Hate the Internet sai por US$ 7, na versão kindle.

Terminada a leitura de livro, fica difícil conectar-se sem culpa às mídias sociais

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