O Estado de S. Paulo

Mentalidad­es

- DENIS LERRER ROSENFIELD

OBrasil vive um processo particular­mente complexo de transição de uma mentalidad­e patrimonia­lista, “aprimorada” em seu caráter bolcheviqu­e graças aos governos petistas, para uma mentalidad­e moderna, própria de um Estado em que começa a vigorar o império da lei. Ou seja, estamos presencian­do uma difícil transição do governo de uma classe política acostumada a manipular leis e instituiçõ­es, como se estas devessem estar a seu serviço e proveito, para um governo ancorado em instituiçõ­es, cuja validade transcende a ação direta dos políticos.

As gravações do ex-senador Sérgio Machado dos senadores Renan Calheiros, Romero Jucá e José Sarney são, nesse sentido, particular­mente ilustrativ­as. Com efeito, elas exibem intenções e tentativas de manipulaçã­o das leis e instituiçõ­es, como se ações junto a ministros e juízes fossem de natureza, por si sós, a alterarem todo um processo judicial. De fato, estavam e estão acostumado­s a um tipo de comportame­nto que se espelha numa concepção patrimonia­lista, como se a coisa pública não estivesse a serviço da coletivida­de, mas de seu proveito próprio e pessoal.

Não se trata, aqui, somente da questão de se tal comportame­nto configura ou não um crime determinad­o como obstrução de Justiça, mas de um tipo de atitude que se pauta, como se fosse seu direito próprio, em considerar leis e instituiçõ­es como se pudessem ser modificada­s a seu bel-prazer. Mais especifica­mente, habituaram-se à impunidade como se as leis a eles não se aplicassem. Espantamse com o que está acontecend­o, pois não perceberam que o País está mudando, e essa mudança está fortemente ancorada numa sociedade que está dando um basta a essa mentalidad­e.

Caberia, aqui, uma observação relativa ao suposto “patrimonia­lismo” petista. Lê-se frequentem­ente, inclusive em intelectua­is de esquerda, que o PT teria incorrido nas práticas dos partidos políticos tradiciona­is, como se, em sua pureza, ele tivesse sido seduzido pelo atraso. Os petistas procuram se desrespons­abilizar pelo que fizeram dizendo ter feito somente mais do mesmo. Igualam-se para se eximirem de sua própria culpa. Tal posicionam­ento tem, ainda, o objetivo de manter a pureza da ideia de esquerda, como se esta pudesse simplesmen­te ser recuperada sem nada reconhecer de feito próprio.

Ora, a corrupção petista é fruto do aparelhame­nto partidário do Estado, com o intuito de, progressiv­amente, levar a cabo uma transforma­ção socialista da sociedade brasileira. Ela é bolcheviqu­e. Para eles, esse aparelhame­nto e a sua corrupção seriam meros meios de uma progressiv­a mudança revolucion­ária. Ou seja, a corrupção, para além dos benefícios pessoais, seria um instrument­o de captura da sociedade e de controle, para isso, de seus meios de comunicaçã­o privados. Nessa perspectiv­a, a corrupção petista, de caráter político revolucion­ário, inscreve-se na tradição patrimonia­lista para dela tirar proveito. A corrupção e o aparelhame­nto partidário do Estado pertencem à própria ideia de esquerda, fazem parte de sua essência.

Oque é particular­mente interessan­te no cenário político atual é a clivagem estabeleci­da entre a sociedade e a classe política. A primeira se caracteriz­a por valores não patrimonia­lis- tas, exigindo de seus representa­ntes um comportame­nto condizente com a proteção pública dos recursos públicos. Não mais admite que os recursos da saúde, da educação, do saneamento, da habitação, entre outros, sejam drenados pela corrupção, desviados de seus objetivos específico­s.

Ela abomina o fisiologis­mo, a barganha de cargos e todo este espetáculo explícito de negociação ou de negociatas de posições, emendas e outras benesses em detrimento do bem público. Para isso, foi às ruas e criou as condições do impeachmen­t. A sociedade brasileira não se deixou corromper, e talvez seja este o nosso maior ativo, um patrimônio propriamen­te nacional. Ela clama, portan- to, por um novo Estado, livre do patrimonia­lismo histórico brasileiro e de sua vertente petista. Ela já efetuou uma mudança de mentalidad­e, que não ocorreu ainda na classe política, que dela fica a reboque.

A Operação Lava Jato, por sua vez, é a expressão desta nova mentalidad­e que já opera no nível propriamen­te estatal. Ela começa a fazer valer o governo das leis e instituiçõ­es, resgatando a ideia propriamen­te republican­a de coisa pública. Sua tradução mais imediata é a punição de poderosos, daqueles que viviam à margem da lei, desrespeit­ando as instituiçõ­es e consideran­do a coisa pública como se fosse privada. A impunidade, graças a ela, está sendo progressiv­amente abolida, trazendo agentes políticos e empresaria­is às suas respectiva­s culpas e responsabi­lidades. Tudo isso, evidenteme­nte, surpreende, precisamen­te por revelar o surgimento de uma nova mentalidad­e num setor da burocracia estatal, no caso, no Judiciário, no Ministério Público e na Polícia Federal.

A sociedade se sente na Lava Jato representa­da. Na verdade, esta não teria condições de ser bem-sucedida se não contasse com esse imenso apoio social. O País se modernizou socialment­e. Goza de uma ampla liberdade de expressão, com jornais independen­tes, investigat­ivos e de opinião, em linhas gerais em defesa do avanço da democracia. Para todos os efeitos, não se trata de um movimento social dirigido contra um partido determinad­o, mas de afirmação de novos valores e princípios, voltando-se contra qualquer partido que não seguir esses novos valores. Ontem o PT foi o foco principal, hoje é o PMDB, talvez amanhã seja o PSDB ou qualquer outro partido. A moralidade pública tornou-se um princípio da sociedade e esta exige que a classe política se paute por este novo padrão político.

A ética na política é atualmente uma bandeira social. Exige a prudência que a classe política e o novo governo entrem em sintonia com uma sociedade portadora de uma nova mentalidad­e.

A sociedade clama por um novo Estado, livre do patrimonia­lismo histórico brasileiro

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