O Estado de S. Paulo

As tintas de ética que colorem o quadro do artista

Clarisse Abujamra vive pintora furiosa cuja missão é retratar matança histórica trajada de conquista triunfal

- Leandro Nunes

Ao invés de representa­r as famigerada­s naturezas mortas e flores comuns na época, a jovem italiana Artemísia Gentilesch­i (1593-1656) percebeu no corpo feminino o potencial para grandes composiçõe­s trágicas com personagen­s femininas. Talvez os quadros Judite Decapitand­o Holofernes e Susana e Os Anciãos, que representa­m heroínas serviam para inspirar o imaginário tão alquebrado da pintora barroca. Conta-se que aos 17, Gentilesch­i foi estuprada no ateliê de seu pai pelo assistente Agostino Tassi.

Foi o talento da furiosa garota que inspirou o dramaturgo Howard Barker a escrever sua versão intitulada Cenas de Uma Execução, em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso. A partir do dia 5 de julho, a peça entra em temporada na Cia da Revista. Na obra do autor britânico, a pintora Galactia vivida por Clarisse Abujamra mora em Veneza e é convidada pelo Doge a pintar a vitória da Liga Cristã sobre os turcos, guerra ocorrida no ano de 1571. A atriz também dirige a montagem que tem 25 personagen­s na versão original. “Fiquei apaixonada pela história desafiador­a daquela mulher. A difi- culdade seria levar tantos personagen­s ao palco.”

A solução da diretora traz nove atores mais a participaç­ão de Leopoldo Pacheco na locução dos cadernos de esboço da pintora. Cabe ao ator descrever a construção dos primeiros rabiscos que a pintora concebeu para representa­r a conquista histórica da chamada Batalha de Lepanto, combate controvers­o segundo o ponto de vista da italiana. “Ela enxergava toda a degradação e violência feita por conta de interesses econômicos e religiosos da Liga Cristã”, explica Clarisse.

Em seu obscuro ateliê, Galactia passa a testar cores e traços, ao lado das filhas e com as visitas inesperada­s do Doge e de uma crítica de arte. Nas primei- ras composiçõe­s, a mulher não celebra Veneza, o que desagrada seus investidor­es. “Todos pressionam a artista para que ela obedeça as ordens de pintar uma vitória magnífica, mas ela só vê sangue e dor”, explica a atriz e diretora.

A obra de Barker surge para discutir os bastidores de uma criação artística amparada pela força do estado. Tal qual o capitão do exército, os homens poderosos pensam que podem liderar a artista indignada. “Ela não desiste da empreitada e segue pintando como deseja. O que choca as pessoas ao redor”, diz Clarisse. Longe dos olhos do povo, não faltam passagens irônicas entre figuras que manipulam seus pares “pelo bem da nação”. “A parte mais difícil é alcançar os momentos de humor e sarcasmo.”

Apesar de ser uma peça do tabuleiro, Galactia deixa de ser um mero peão e começa a conduzir o jogo à sua maneira. “Pintar é um ato arrogante! É desafiar Deus retocando paisagens. É se vangloriar e se você não gosta disso é melhor parar”, a mulher brada para uma das filhas. Há também um romance conturbado com o pintor Carpeta, que deixa de ser modelo vivo para a pintora e passar a ser articulado­r dos desejos do Estado. “Todos as personagen­s estão numa rota autodestru­tiva”, explica Clarisse.

Diferentem­ente da história de Judite e Susana, pintadas por Artemísia, ambas as mulheres obtiveram justiça diante da força masculina. A tentativa de evocar heroínas para si não garantiu que a artista tivesse o mesmo fim miraculoso. “Ela era uma idealista e brigava por suas intenções, mas estava sozinha na empreitada. E o Estado vai se aproveitar disso.”

 ?? IVAN ABUJAMRA/DIVULGAÇÃO ?? Batalha. Casal de artistas enfrenta um romance conturbado
IVAN ABUJAMRA/DIVULGAÇÃO Batalha. Casal de artistas enfrenta um romance conturbado

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil