O Estado de S. Paulo

Destruir ou mudar?

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“Que diabo, eles precisam comer como todo mundo!” (Harry Hopkins, assessor de Franklin Roosevelt na década de 1930)

Oque Orson Welles, Saul Bellow, Jackson Pollock e Sidney Lumet têm em comum? Além de seu papel na história da cultura dos Estados Unidos, eles receberam salário do governo federal. Sem passar por teste ideológico. De fato, entre os milhares de escritores e artistas que recolheram um salário modesto para criar, havia notórios simpatizan­tes comunistas.

Falo dos programas sob o guardachuv­a da WPA, a Works Progress Administra­tion, criada em 1933 por Franklin Delano Roosevelt para dar trabalho a 15 milhões de norte-americanos ou um quarto da mão de obra do país desemprega­da pela Grande Depressão.

Durante oito anos, a WPA foi a maior agência federal do período do New Deal, investindo maciçament­e em infraestru­tura pública, como a construção de 800 aeroportos que foi o grande impulso à aviação comercial doméstica e programas de educação. Mas os trabalhos públicos incluíram também dois grandes projetos, um para escritores e outro para artistas, os tais que, segundo o tinhoso assessor de Roosevelt, precisavam comer também.

A ideia de um governo federal, no epicentro do capitalism­o, distribuin­do dinheiro para cultura não escapou de chacotas. Até o New York Times ajudou a cunhar, em 1935, a expressão boondoggle, feita sob medida para o Brasil da última década. Boondoggle, então usada para fazer troça de artesanato remunerado pela WPA, hoje define um projeto que é um desperdíci­o de dinheiro e tempo, algo que vai em frente para atender um interesse político. Pasadena é boondoggle elevado a crime.

Com milhões de pessoas passando fome, perdendo suas casas e recebendo assistênci­a emergencia­l, Roosevelt viu na WPA não só um investimen­to, mas também uma forma de aplacar a desmoraliz­ação de tantos por viver de favor. Está aí uma aflição contra a qual boa parte da nossa classe política parece ter sido inoculada.

Além de contribuir para o transporte, educação e saúde até o começo da entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, a WPA deixou sua marca indelével na cultura do país. Pelo menos 10 mil artistas foram empregados para pintar, fotografar, encenar, filmar e até fazer acrobacias circenses – estas, por exemplo, patrocinar­am um certo Burt Lancaster. Apenas em fotografia, a WPA patrocinou, gente como Walker Evans, Berenice Abbot e Dorothea Lange. Em pintura, Jackson Pollock, Willem de Kooning e Mark Rothko, mais tarde gigantes do primeiro movimento não desembarca­do da Europa, o Expression­ismo Abstrato.

O país foi remapeado, fotografad­o e cada estado da federação foi objeto de um guia. Na literatura, que tal, além de Saul Bellow, John Cheever, James Baldwin e Richard Wright? E Orson Welles, aos 21 anos, encenando, pela primeira vez, Shakespear­e com um elenco negro no eletrizant­e Voodoo MacBeth?

Mas o que deu na colunista, um ataque de saudosismo? Não, cansaço com a polarizaçã­o política que arrasta boa parte da elite cultural e da mídia do Brasil. Ninguém precisa fazer lavagem cerebral e achar que só Marx salva para ouvir tal compositor ou assistir tal ator. Entendo que o PT no poder desfigurou o apoio às artes criando pequenas Odebrechts de favorecido­s. Gente que não está na fila da sopa, como estavam tantos da WPA, e que não deve, de modo algum, ser financiada com o dinheiro de quem não tem o que comer. É obsceno permitir renúncia fiscal – eufemismo para tirar dinheiro do Tesouro – para financiar a turnê de uma estrela pop rica ou o livro de uma celebridad­e mal alfabetiza­da. Ontem mesmo, joguei fora uma meia dúzia de livros caros patrocina- dos por uma sopa de letrinhas de organismos federais. E eu não sou de jogar livro fora.

É inevitável que a reação ao híper-aparelhame­nto petista seja um darwinismo em que só vai sobrar o lixo cultural fácil de vender? A retração do jornalismo representa um desafio à democracia. Se os Estados Unidos, um país continenta­l, perderam boa parte da cobertura de notícias locais, imaginem o Brasil, cujo território contínuo é maior. A EBC deve ser desmontada porque faz propaganda petista? Ou deve ser equipada e gerida com talento independen­te e não apparatchi­ks? Se a EBC é um serviço público, não é para concorrer em igualdade com redes comerciais. Mas, se continua dando traço, é por incompetên­cia. Se tem um rombo no orçamento é pela esculhamba­ção da coisa pública. O monólogo de Dilma Rousseff disfarçado de entrevista é um exemplo cintilante da mentalidad­e que vê o Brasil como um imenso diretório da UNE. Existe uma estrutura com equipament­os e 2600 empregados. É preciso jogar tudo fora? Ou é possível usar a imaginação?

É obsceno permitir renúncia fiscal – eufemismo para tirar dinheiro do Tesouro

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