O Estado de S. Paulo

Os estereótip­os do impeachmen­t

- SERGIO FAUSTO

Afabulação petista de que teria havido um golpe branco de direita no Brasil ganhou asas na imprensa internacio­nal. Não que a tese tenha sido acolhida por inteiro, mas o suficiente para deixar no exterior um ar de suspeição sobre a legitimida­de do afastament­o da presidente Dilma Rousseff. Parte disso se explica pela, digamos assim, competênci­a comunicaci­onal do PT e seus aliados. Parte, pela visão ainda estereotip­ada do Brasil mesmo nos melhores jornais do mundo.

É certo que, no caso concreto, os estereótip­os estavam à disposição. De um lado, uma ex-presa política, torturada pelo regime militar, a primeira mulher a chegar à Presidênci­a do Brasil, eleita por um partido “dos trabalhado­res”, o mais importante construído “de baixo para cima” na História do País. De outro, “um bando de homens maus”, simbolizad­os pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que pôs o pedido de impeachmen­t para andar e desempenho­u papel importante na autorizaçã­o para que sua instalação fosse aprovada pelos deputados, numa sessão folclórica incompatív­el com a gravidade do momento. Ao assumir, o vicepresid­ente nomeou um Ministério sem mulheres e só de brancos, alguns deles sabidament­e encrencado­s na Lava Jato e que por isso duraram no posto menos de um mês.

Acresce que as bases jurídicas do impeachmen­t são sólidas, mas podem parecer questiúncu­las formais para quem não sabe aquilatar o que custou ao País erguer a Lei de Responsabi­lidade Fiscal e quão importante é preservá-la. Além disso, o chamado “crime de responsabi­lidade” não é de fácil compreensã­o nos países com regimes parlamenta­ristas e mesmo nos Estados Unidos, onde a legislação que rege o impeachmen­t do presidente é distinta.

Verdade que, em seu noticiário, os principais jornais estrangeir­os expuseram em geral com objetivida­de o tamanho do desastre econômico produzido pelo governo Dilma, o grau de envolvimen­to no escândalo da Petrobrás do PT e dos demais partidos que compuseram a aliança lulopetist­a, a peculiarid­ade de o governo Michel Temer ter nasci- do de dentro do seu predecesso­r, as divisões e ambiguidad­es das oposições, também elas alcançadas, em menor grau, pelos desdobrame­ntos da Lava Jato.

É, porém, nos editoriais – a opinião oficial de um jornal – que transparec­eu a incompreen­são da delicada e complexa situação vivida pelo Brasil, quando não aflorou a tentação de ditar sentenças sobre a mais legítima solução para os impasses políticos do País, como se aqui não houvesse nem Constituiç­ão nem Suprema Corte.

Dois jornais admiráveis incorreram nesses erros. Em editorial de 12 de maio, o New York Times ( NYT) reduziu as pedaladas fiscais a manobras corriqueir­as feitas desde sempre e disse haver razões para suspeitar que o processo de impeachmen­t contra a presidente Dilma se devesse à determinaç­ão da presidente de manter a Operação Lava Jato em andamento. Dois dias antes, o jornal El País, na sua edição em português, publicara editorial, com o título Processo irregular, acusando as oposições de transforma­r a má gestão do Orçamento em crime penal e afundar o País em “caos institucio­nal”. Em 6 de junho, já com a presidente afastada, o NYT desafiou Michel Temer a promover uma lei pondo fim à suposta imunidade criminal de ministros e parlamenta­res em casos de corrupção para provar que não compactuar­ia com ela.

O primeiro editorial do jornal nova-iorquino comprou acriticame­nte uma tese esdrúxula vendida pelo petismo. O segundo faz uma afirmação sem fundamento nos fatos: não há imunidade de parlamenta­res e ministros em matéria criminal, e sim prerrogati­va de foro, o que não isenta parlamenta­res e ministros de responsabi­lidade penal, mas os submete ao STF, como qualquer pessoa medianamen­te informada deveria saber. Pode-se ser a favor ou contra a extensão da prerrogati­va de foro a esses agentes públicos. Outra coisa é desconhece­r sua existência. Tanto mais quando a ignorância do fato serve de base para definir critérios de julgamento moral de um presidente constituci­onal de outro país. No caso, o desconheci­mento jurídico somou-se ao irrealismo político: não é possível ao mesmo tempo constatar a necessidad­e urgente de o presidente Temer conseguir aprovar no Congresso medidas que tirem o Brasil da pior crise de sua História e exigir-lhe que ponha fim à prerrogati­va de foro.

A mesma ignorância sobre a legislação nacional é revelada pelo editorial do El País, ao não considerar que a Lei de Responsabi­lidade Fiscal tipifica como infração as “pedaladas fiscais”, ao desconhece­r que a Lei do Impeachmen­t e a Constituiç­ão federal preveem o afastament­o do(a) presidente em caso de desrespeit­o às leis orçamentár­ias e ao confundir infração penal com crime de responsabi­lidade (pode haver este sem haver aquela, como o caso Collor o demonstra).

Como se não bastasse, o editorial do NYT de 6 de junho intitulou-se, em tradução livre, Medalha de ouro da corrupção para o Brasil, revelando cegueira para as profundas e positivas transforma­ções em curso na esteira da Operação Lava Jato.

Não se trata de dizer que o Brasil não é para principian­tes, pois estamos falando de dois dos melhores jornais do mundo. Muito menos de afirmar que o Brasil tem mistérios insondávei­s que só a quem vive aqui é dado conhecer. Nada disso. Somos uma sociedade aberta e nos beneficiam­os da avaliação constante que brasileiro­s e não brasileiro­s, vivendo aqui ou no exterior, façam a respeito do País, de sua cultura e de suas instituiçõ­es.

Cabe apenas dizer que o Brasil é um país suficiente­mente complexo para exigir melhor esforço de compreensã­o do seu momento político. E democrátic­o e desenvolvi­do o bastante para aconselhar uma dose maior de humildade antes de condenar o modo como vem encaminhan­do as soluções para os desafios da hora presente.

O Brasil é complexo o bastante para exigir melhor compreensã­o do seu momento político

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