O Estado de S. Paulo

O último atreviment­o

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Se já não houvesse razões mais do que suficiente­s para que tenha seu mandato de deputado cassado por falta de decoro p a r l a ment a r , Eduardo Cunha as forneceu ele próprio com o atreviment­o de comparecer à Comissão de Constituiç­ão e Justiça (CCJ) da Câmara para, dirigindo-se aos, segundo ele, 117 parlamenta­res investigad­os por corrupção, declarar, com o mais absoluto despudor, o que pode ser resumido em português claro: “A perseguiçã­o não para, não se pode mais roubar em paz. Hoje foi comigo, amanhã será com vocês. Só há uma saída: corruptos, unamo-nos!”.

Eduardo Cunha é, definitiva­mente, um fenômeno patológico. Em mais de um quarto de século de vida pública tem colecionad­o toda sorte de suspeitas sobre enriquecim­ento ilícito. É hoje um homem muito rico que faz questão de ostentar um padrão de vida altamente sofisticad­o, que justifica invocando rendimento­s obtidos com a exportação de carnes enlatadas para a África e com sua habilidade no mercado financeiro. Já sua mulher, a ex-jornalista Claudia Cruz, também ré da Lava Jato, alega que a fortuna do casal advém, principalm­ente, de bem-sucedidos investimen­tos imobiliári­os na Barra da Tijuca.

Réu em dois processos da Lava Jato até agora e acusado em várias delações premiadas de ter exigido e recebido milhões de dólares em propina, Cunha foi alvo de uma decisão inédita do Supremo Tribunal Federal (STF), que por unanimidad­e o afastou do exercício do mandato de deputado federal e do cargo de presidente da Câmara dos Deputados, ao qual renunciou dias atrás numa evidente manobra para tentar salvar a condição de parlamenta­r que lhe garante foro privilegia­do na Justiça.

Com extrema ousadia e inegável habilidade política, nos últimos anos Eduardo Cosentino Cunha logrou reunir em seu entorno um grande número de aliados, deputados de dentro e de fora das fileiras de seu partido, o PMDB. Construiu esse grupo recorrendo exatamente aos mesmos expediente­s que garantiram aos governos petistas montar uma sólida base de apoio parlamenta­r: o toma lá dá cá. A troca de favores foi sustentada pela teia de relações cultivada por Cunha nos altos escalões do governo e, principalm­ente, nos círculos empresaria­is, por meio dos quais conseguiu oferecer apoio financeiro a dezenas de campanhas eleitorais de parlamenta­res e prefeitos.

A primeira grande manifestaç­ão da eficiência dos métodos políticos de Eduardo Cunha contou com a inestimáve­l colaboraçã­o de Dilma Rousseff. Recém-empossada em seu segun- do mandato e com a soberba à flor da pele, a pupila que hoje Lula renega entendeu que era hora de acabar com a incômoda influência de seu principal aliado, o PMDB, no Congresso Nacional. Decidiu ignorar acordos e instalar um petista na presidênci­a da Câmara dos Deputados, em fevereiro do ano passado. Foi fragorosam­ente derrotada por Cunha, no primeiro turno da votação, pois naquele instante o parlamenta­r fluminense já tinha sob controle o chamado baixo clero, hoje conhecido como Centrão. Foi o começo do fim de Dilma.

O circo de horrores na política a que o País assistiu no último ano e meio, tornado mais complexo e grave pela sucessão de escândalos envolvendo agentes públicos e empresário­s, pode estar chegando agora ao limiar de uma nova fase com a remoção da cena dos dois inimigos figadais, Dilma e Cunha, que tanto mal têm feito ao Brasil.

O ex-presidente da Câmara, que acabou se transforma­ndo no maior símbolo de tudo o que os brasileiro­s repudiam na política e por essa razão tem um índice recorde de rejeição pela opinião pública, encara sua agonia final com o mesmo despudor que sempre foi a marca registrada de seu comportame­nto político. Mas seu fim é inevitável, pois o que lhe resta de poder se esvai na medida em que os antigos aliados se dão conta de que ele não tem mais nada a oferecer. Terá o mandato cassado, provavelme­nte em agosto, e aí vai ter que se entender com a Justiça de primeira instância – o juiz Sergio Moro, inclusive – e em seguida fazer companhia ao crescente bando de corruptos que começam a lotar as cadeias. Falta o destino ser suficiente­mente irônico para jungir Cunha e Dilma, simultanea­mente, no caminho do esquecimen­to. Seria uma ótima notícia, para variar.

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