O Estado de S. Paulo

‘MÁFIA VERDE’ ATUA DO DESMATE À VENDA DE LOTES

Na tabela da violência, que acompanha todo o processo, preço da morte de uma pessoa equivale ao de 2 ou 3 m3 de ipê

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A destruição da floresta e a pressão implacável de grileiros sobre terras do Centro-Oeste e Norte do País resultaram num mercado ilegal que integra, por vias tortas, a cadeia econômica dos grandes centros e seus poderes paralelos. Na engenharia financeira dos crimes do campo, o comércio da violência estipula tabelas de preços para vidas de homens e árvores, expandindo suas raízes para todas as esferas do poder público e deixando um rastro de prejuízos sociais e ambientais.

Para compreende­r como funciona essa engrenagem, o Estado coletou informaçõe­s e de- poimentos de madeireiro­s, puxadores de toras, pistoleiro­s, grileiros, posseiros, pequenos agricultor­es, extrativis­tas e pessoas ameaçadas de morte. Para estimar a dimensão do rombo, a reportagem cruzou três informaçõe­s: média de área desmatada anualmente, volume aproximado de madeira extraída de florestas e preço cobrado por m³ extraído ilegalment­e. Na tabela de preços da barbárie, o assassinat­o de uma pessoa não difere tanto do valor cobrado por dois ou três m³ de ipê, que hoje é arrancado da floresta por cerca de R$ 1,5 mil. Na cotação de Ariquemes, Rondônia, um pistoleiro “profission­al” costuma cobrar de R$ 5 mil a R$ 10 mil para executar seu serviço, conforme a “importânci­a” de quem vai perder a vida. Na média, ele costuma ir a campo por bem menos que isso. A floresta foi tomada por uma hierarquia bem estruturad­a de agentes criminosos, onde o madeireiro é protagonis­ta. Ele financia operações, recebe encomenda – muitas vezes de metrópoles distantes, como São Paulo – e se movimenta para fazer a entrega. Seu alvo são as madeiras nobres. A busca fica nas mãos de toreiros, homens enviados ao mato para contabiliz­ar árvores e calcular o custo de abertura de trilhas.

O investimen­to é alto. Na fronteira de Rondônia com o Pará, uma ação com dez homens custa aproximada­mente R$ 240 mil. Com esse dinheiro, é possível contratar duas máquinas, mateiros, olheiros e abrir um rasgo de 5 a 10 km na mata virgem. Nas unidades de conservaçã­o, a porta de entrada dos criminosos costuma ser sítios localizado­s no entorno da floresta. Em Rondônia, por cerca de R$ 7 mil por semana, donos de propriedad­es abrem suas porteiras para que madeireiro­s invadam a mata. A derrubada normalment­e é feita por um trator skidder, praticamen­te um tanque de guerra capaz de pas- sar por cima de tudo o que encontra pela frente. O avanço médio do estrago é de 1 km por dia. Sem dificuldad­e, um skidder pode arrastar sozinho cerca de 150 m³ de madeira por dia. Em apenas uma semana, 40 hectares vão abaixo, uma área de 40 campos de futebol.

A retirada do material costuma ser feita à noite, mas a reportagem também flagrou vários caminhões carregados de madeira em plena luz do dia. Antes de a encomenda seguir até os pátios dos madeireiro­s, batedo- res com motos são usados para checar se o caminho está limpo. Informaçõe­s são passadas por rádio. Para camuflar o material, etiquetas são coladas nos troncos para simular que a madeira veio de área onde o manejo é permitido. É um golpe fácil, já que não há fiscalizaç­ão sobre a origem real do material.

A retirada das espécies mais caras garante o lucro do madeireiro, paga contas de empregados e máquinas e financia as etapas seguintes da devastação. Depois de aberto o rasgo na mata, será a vez do segundo, terceiro e quarto ciclos do roubo da madeira. Nessas etapas, são abertas as esplanadas, canteiros laterais onde os toreiros cortam os tipos de menor valor. A dilapidaçã­o chega ao fim com a entrada dos lasqueiros, em busca de material para a construção de cerca. Exaurida toda a madeira de interesse comercial, queima-se o resto. A partir daí, o terreno está pronto para as “correrias pelas terras”, a disputa que definirá o que será pasto e o que será recortado pelos grileiros. Da derrubada das árvores ao loteamento ilegal das terras, as digitais da máfia verde são vistas a olho nu. Demitida, servidora de Rondônia volta ao trabalho para liberar ilegalment­e 880 caminhões de madeira. Ibama diz que política na Amazônia segue lógica do crime.

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Troncos etiquetado­s. Papéis muitas vezes são usados para simular uma extração legal

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