O Estado de S. Paulo

O tempo que parou atrás das grades

Em ‘Noites Sem Fim’, ex-detentas reaprendem a viver do lado de fora

- Leandro Nunes

“Se você gritar no espaço sideral, ainda que a pessoa esteja ao seu lado, ela será incapaz de te ouvir”, uma mulher lê um trecho de um livro. “Aqui na Terra, isso também acontece”, responde a outra. O texto da dramaturga Chloë Moss traz confidênci­as de mulheres que cometeram crimes e foram encarcerad­as. A inglesa conviveu com as presidiári­as do Cookham Wood, um presídio originalme­nte construído para abrigar rapazes infratores e que, mais tarde, passou a alojar mulhe- res. A experiênci­a de três meses da dramaturga redundou na criação de Lorraine e Marie, ex-detentas de Noites Sem Fim, vividas por Angela Figueiredo e Fernanda Cunha. A montagem estreia nessa quinta-feira, 14, no Centro Cultural Banco do Brasil.

A montagem de Marco Antonio Pâmio reproduz a casa de Marie, lugar do reencontro das velhas amigas. O texto não se furta a dar a descrição completa das personagen­s, talvez porque a sala de espetáculo não se pareça em nada com um tribunal. O diretor explica que a peça oferece pistas sobre a vida delas. “O que importa é o que está acontecend­o no palco, em como elas vão viver nesse novo mundo.”

Durante a criação da peça, a dupla de atrizes visitou a Penitenciá­ria de Sant’Anna, no Carandiru. “Não conseguimo­s falar com as presidiári­as, mas conversamo­s com pessoas que tra- balham lá dentro”, explica Angela. O que impression­ou as duas é que as diferenças entre homens e mulheres seguem, mesmo atrás das grades. Fernanda explica que a fila de visitantes é longa nos presídios masculinos. O mesmo não acontece com as presidiári­as. “Muitas delas são abandonada­s pelos pais, maridos e filhos.” Angela acrescenta que a grande maioria está lá porque foi parceira nos crimes de cônjuges. “Elas acobertara­m crimes e levaram a culpa por eles”, conta.

Mas também existem mulheres que assumiram os próprios atos e foram julgadas. A personagem de Angela matou um homem. No fim de sua pena, ela sai da prisão e vai ao encontro de Marie, que vive em um studio. “Uma maneira chique de dizer quitinete”, ironiza a personagem. A jovem trabalha e passa a abrigar a amiga em sua casa, até que as coisas possma melhorar. O que segue são noites de inquietaçã­o que, como o nome da peça, vão ajudar a expor a fragilidad­e delas. “O mundo não vai ajudá-las”, diz Fernanda. “Elas precisam se virar para sobreviver.” Para Fernanda também foi importante também compreende­r quem seriam essas mulheres na realidade brasileira. “Não são mulheres pobres, ou que vivem na periferia.” O diretor afirma que não seria interessan­te localizar a história no mapa. “O que as personagen­s sofrem é mais universal”, ressalta Pâmio.

A parceria das amigas também vai sofrer com a revelação de alguns segredos. Lorraine recebe a carta do seu filho e vai encontrá-lo. Já Marie enfrentará problemas sérios no trabalho. “Elas percebem que não podem viver sozinhas, e isso se transforma numa relação de mãe e filha”, conta Angela.

E nas próximas semanas, as atrizes estarão bem juntas. Elas vão cumprir um extensa jornada com apresentaç­ões do espetáculo de segunda a domingo, exceto às terças, quando o CCBB está fechado. E o projeto seguirá no caminho inverso ao da dramaturga: Angela e Fernanda desejam realizar leituras dramáticas da peça em penitenciá­rias.

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JOÃO CALDAS/DIVULGAÇÃO

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