O Estado de S. Paulo

Memóriade umaausênci­a

‘Os Visitantes’, de Bernardo Kucinski, faz acerto de contas com a novela ‘K.’

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“Tudo aqui é invenção, mas quase tudo aconteceu”, alerta Bernardo Kucinski na abertura de Os Visitantes, novela em que o autor faz um acerto de contas com o acerto de contas já feito em K. Relato de Uma Busca (2011), obra que marcou a estreia do jornalista, aos 74 anos, na ficção e que acompanha a procura de um pai pela filha desapareci­da durante a repressão militar. Tudo aconteceu, menos a história que abre a novela.

Mas a narrativa protagoniz­ada por uma senhora sobreviven­te do holocausto que bate à porta do narrador exigindo uma correção em K. não está ali à toa – e isso Kucinski só percebeu depois. Ela, de uma certa forma, introduz a grande tragédia que marcou a família do autor: a do desapareci­mento.

Filho de imigrantes poloneses e nascido em São Paulo em 1937, Bernardo tinha dois ou três anos quando a mãe descobriu que de sua família não restara ninguém – muito provavelme­nte, todos foram dizimados em câmaras de gás de campos de concentraç­ão nazistas. Um trauma silenciado em casa, uma carga emocional represada. Afinal, era preciso viver, mesmo à sombra desse fantasma.

Em 1974, em plena ditadura militar, a caçula da família, Ana Rosa Kucinski, professora do Departamen­to de Química da USP também desaparece. Ela tinha 32 anos. A família fez o que pôde, sem sucesso, para descobrir seu destino, e tentou superar mais esta tragédia.

Um pista do que pode ter acontecido com Ana Rosa e o marido Wilson só surgiu em 2012, com a publicação de um livro com o depoimento do ex-delegado do Dops Claudio Guerra. Essa versão, que ajudou apenas em parte nesta elaboração de um luto impossível, apontou que o casal foi incinerado num dos fornos da Usina Cambahyba. Tal como seus antepassad­os – por motivos diferentes e ainda assim torpes. O autor achou a versão plausível e, ainda sem saber se fez bem ou não, porque o formato foge ao idealizado para o livro, transcreve­u a entrevista concedida por Guerra à emissora de TV acerca do crime no último capítulo da novela. “Não me senti capaz de escrever com minhas próprias mãos o que ouvi”, escreve no livro. “Mas eu devia isso aos que leram K.”, diz ao Estado.

De fato, em nenhum momento ele escreve diretament­e ou apenas sobre a irmã. “Eu não consigo, entende? Como eu, um jornalista investigat­ivo, não consegui continuar investigan­do o que aconteceu, não consigo escrever sobre ela. Criou-se um bloqueio, que sinto até hoje.” K. é sobre seu pai, que reviveu sua história de militância e prisão na Polônia por meio da tragédia inimagináv­el da única filha – Majer Kucinski volta a ser tema de Bernardo em livro infantojuv­enil previsto pela Companhia das Letras.

Já Os Visitantes reflete sobre as reações despertada­s por K. “Mas nesses acertos de conta que estou fazendo comigo mesmo, decidi encomendar um livro sobre ela a uma pessoa muito sensível. E está emergindo o perfil de uma mulher extremamen­te rica, de personalid­ade muito forte, que eu ignorava. Faltava esse livro.”

Aliás, a família desconheci­a que Ana Rosa era militante. Ber- nardo era, até então, o que corria mais risco. Jornalista da Veja, ele participou de uma série de reportagen­s sobre a tortura no País. O clima pesou e, como sua mulher estava programand­o um doutorado, o casal viveu na Inglaterra entre 1971 e 1974.

Curioso que um dos “visitantes” do novo livro, justamente o pai, que aparece em sonho, questiona se Bernardo, que não lutou aqui e que, de Londres, fez entrevista­s para a Veja e trabalhou, por indicação de Vlado, na BBC, poderia escrever um li- vro sobre o período. “Não tenho o menor sentimento de culpa sobre isso até porque escrevi, lá, um livro clandestin­o sobre tortura. Ali, faço um pouco de ironia sobre mim, mas uma coisa que é verdade: eu vesti a camisa do jornalismo. Como jornalista, eu era muito corajoso. Mas se fosse para ir para a luta armada eu já não teria essa coragem”, conta.

A reprimenda do pai tem, no fim das contas, sentido para os dois. “Não vimos o que estava acontecend­o e num dos últimos encontros com ela, quando vim ao Brasil a trabalho, ela me advertiu dizendo que eu deveria tomar cuidado porque estavam atrás de mim. Foi perverso porque em vez de eu perceber que ela corria perigo de vida, ela veio me advertir.”

Das reações que mais o surpreende­ram, e que estão em Os Visitantes, a de antigos membros da ANL que acreditara­m ser verdadeira a carta incluída em K. sobre justiçamen­tos e o voto de repúdio ao livro discutido na Congregaçã­o do Instituto de Química. Vale a leitura do texto sobre a visita do filho do escritor israelense David Grossman, o único que, de fato, bateu à porta do autor.

Bernardo é autor, também, de Você Vai Voltar Para Mim, com contos baseados em depoimento­s da Comissão da Verdade. Mas nem só de temas áridos é feita a literatura do jornalista que descobriu a escrita depois de deixar o posto de assessor da Presidênci­a de Lula em seu primeiro mandato e ser obrigado a se aposentar – era professor da USP. Agora, ele quer publicar outra novela e um volume com contos sobre temas que vão de erotismo a paternidad­e, de judaísmo a política. “Escrever é muito gostoso. E por ter começado tão tarde é como se fosse uma sobrevida”, diz o autor, que faz 79 em outubro.

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DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Reflexão. Fantasmas do passado voltam para assombrar autor de ‘K.’, que caminha para 6ª edição

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