A 11.ª medida
Oprocurador da República Deltan Dallagnol publicou artigo nesta página defendendo o pacote de medidas contra a corrupção produzido pelo Ministério Público Federal. O pacote é uma alteração do sistema penal e processual penal brasileiro como um todo, 10 Medidas contra a Corrupção é apenas o atraente nome que lhe foi dado.
O artigo subscrito pelo respeitado procurador da República concentra-se basicamente na questão da prova ilícita. Para tanto, parte de duas premissas: 1) O Brasil é exigente demais com a licitude da prova e muitos casos são anulados por causa disso; 2) importamos pela metade dos Estados Unidos disciplina sobre a prova ilícita, o que acaba dificultando demais o trabalho da polícia no Brasil.
A lógica dele é a seguinte: nosso país precisa ser mais tolerante com a prova ilícita, permitindo, por exemplo, que provas ilegais colhidas de boa-fé sejam usadas para acusar um cidadão. Somente assim, dá a entender o autor, as forças do Estado poderiam combater o crime com mais vigor.
A intenção parece das melhores: solucionar o grande déficit causado pela impunidade, permitindo maior eficácia na repressão penal. Do que, no entanto, o procurador talvez não se dê conta é que o Brasil é muito mais tolerante com a prova ilícita do que se imagina. Muito mais até do que qualquer país civilizado.
Boa parte das buscas domiciliares no País é feita sem mandado judicial e validada com a alegação do policial de que contaram com o consentimento do morador (dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP). Boa-fé.
Pesquisa recente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostra que a esmagadora maioria dos presos não é alertada sobre seus direitos no caminho até a delegacia. Não há um julgado de tribunal anulando processo criminal por causa disso. Boa-fé.
A lei só permite escutas telefônicas de no máximo 30 dias, mas os tribunais estão abarrotados de decisões que permitem a relativização desse tempo, validando escutas que chegam a du- rar meses, até anos. Boa-fé.
O próprio Innocence Project, entidade americana que analisa casos de erros judiciários nos EUA, alerta que duas das principais causas de condenações injustas são má conduta policial e erro de procedimento dos órgãos de acusação. Imaginem o resultado do trabalho se fosse feito no Brasil!
A discussão proposta pelo procurador é interessante. E fica ainda mais interessante quando se constata que em países como os EUA a mesma severidade que a lei dispensa aos delinquentes dispensa também aos maus policiais e agentes públicos incumbidos da investigação. O site Conjur noticiou recentemente que uma promotora naquele país foi condenada, afastada e poderá ser presa simplesmente porque vazou informações sigilosas de um julgamento para os jornais.
Todo modelo jurídico precisa funcionar com pesos e contrapesos. É o que garante equilíbrio ao sistema. É como um automóvel, que tem acelerador e freio. O conjunto das dez medidas foi construído com a marca inversa. Importa o peso, mas ignora o contrapeso. Nada que não possa ser corrigido num debate maduro e equilibrado.
Basta ver que o pacote não oferece um único antídoto contra os excessos, ao contrário, sem- pre que podem os procuradores se manifestam contra qualquer tentativa de criminalizar seus próprios desvios, como fizeram recentemente no tocante ao projeto que altera em boa hora a lei de abuso de autoridade. Se é verdade que o pacote defendido por Deltan Dallagnol só permite uso de prova ilícita obtida de boa-fé, qual o problema de criminalizar a prova ilícita obtida criminosamente, como prevê o citado projeto, que eles demonizam? Esta, aliás, não seria uma importante 11.ª medida contra a corrupção, já que a corrupção é irmã gêmea dos abusos e excessos do Estado? Por que tamanha resistência? A resistência acaba abrindo os olhos da sociedade para o fato de que as intenções, que num primeiro mo- mento pareciam ótimas, podem não ser tão boas assim...
O mesmo ocorre com o tal teste de integridade, outra medida do pacote, neste caso, uma bugiganga que se diz importada de Hong Kong. Se ele não será usado para fins ilícitos, qual o problema de criminalizar o agente estatal que incita ou instiga o cidadão a praticar um crime só com o fim de prendê-lo em flagrante? Trata-se de excelente medida contra o abuso e, obviamente, contra a corrupção policial que os procuradores relutam a aceitar, quanto mais a colocar no seu pacote de medidas contra a corrupção.
A propósito, o que não está muito claro é se o teste de integridade será obrigatório também para os membros do Ministério Público (não seria razoável a discriminação) e se haverá transparência no resultado, ou melhor, se o cidadão comum poderá acessá-lo publicamente. Se a resposta for positiva, aí, sim, haverá um grande avanço na transparência dos órgãos ligados ao Judiciário, que ainda insistem em manter a portas fechadas as denúncias de malfeitos que pesam contra seus integrantes.
A sociedade aplaude a iniciativa das dez medidas, e o País precisa de muitas medidas, não dez, mas talvez cem medidas contra a corrupção. O que, no entanto, as pessoas mais atentas estão debatendo com preocupação é que as modificações propostas pelo Ministério Público parecem mais uma luta por espaço e poder no processo investigatório e menos um debate que envolva o conceito de justiça, num sentido mais amplo. Essa carta branca para os órgãos de investigação só existe em regimes totalitários.
Para que a boa-fé invocada possa ser mais bem compreendida o pacote precisaria começar enfrentando um importante desafio, que é incluir o contrapeso necessário, a 11.ª medida, demonstrando à sociedade que estão dispostos a cortar na carne e responder criminalmente quando ficar comprovado que tenham praticado desvios e excessos durante a investigação. Do contrário, é gol com a mão.
Pela boa-fé invocada por Dallagnol, o pacote do MP precisa incluir o necessário contrapeso