O Estado de S. Paulo

Comunicar-se-ão?

- EUGÊNIO BUCCI

Agora, o Brasil inteiro descobriu que o governo de Michel Temer não se comunica direito. O óbvio se impôs, finalmente. Os ministros comunicam-se muito mal, de fato. Eles se comunicam mal entre si e se comunicam pior ainda com a Presidênci­a da República.

Esta semana, o ministro da Justiça, em incontinên­cia comunicati­va, excedeu-se em comentário­s sobre a Operação Lava Jato e consta que foi repreendid­o pelo presidente. Na semana passada, a proposta de reforma do ensino médio tropeçou por dois ou três desmentido­s antes mesmo de aparecer no Diário Oficial. Dias antes, o excesso vocabular veio de Geddel Vieira Lima, ministro-chefe da Secretaria de Governo, que desconcert­ou o presidente. O primeiro declarou que caixa 2 não deveria ser crime e quem praticou esse tipo de desvio no passado não deveria ser “penalizado”. O segundo correu para dizer que não era bem assim, sem, no entanto, esclarecer como é que bem deveria ser.

Os desacertos “comunicaci­onais” federais vão além. Não ficam só na comunicaçã­o interna. A relação com a sociedade é ainda mais aturdida. O presidente da República não consegue comunicar uma pauta definida para a sua gestão. Aliás, não comunica bem a razão por que está onde está. Em seu discurso na ONU, proclamou para o mundo que o “impediment­o” (de Dilma Rousseff, cujo nome ele não pronunciou) se deu “dentro do mais absoluto respeito constituci­onal”. Ficou a impressão de que ele quis dar alguma satisfação aos que olham com desconfian­ça para o impeachmen­t.

Preto no branco, seu governo não comunica direito o que se passou. Nem para a ONU nem para o Brasil. O brasileiro médio não sabe dizer em que consiste esse tal de crime de responsabi­lidade, nem sabe dizer por quais razões jurídicas Dilma Rousseff teve de ser deposta. Se não entende isso, não entende também por que Temer assumiu o poder. Nesse ponto, a comunicaçã­o dos que afirmam que Dilma sofreu um golpe foi mais eficiente do que a comunicaçã­o do Planalto. Conclusão: um governo que não sabe dizer a que veio e por que veio é, no mínimo, um governo que se comunica mal.

Quanto a essa parte do diagnóstic­o, estão todos de acordo. O problema é que em momentos assim uns e outros começam a profetizar que, mudando a comunicaçã­o, tudo vai se acertar. Interessan­te como, na hora do aperto, os poderosos apelam para soluções mágicas. Na Tebas das peças de Sófocles, quando um rei não sabia o que fazer mandava chamar o adivinho Tirésias. Na Rússia do czar Nicolau II, os Romanov valiam-se dos embustes de Rasputin. No Brasil de hoje, muitos alimentam a crendice de que os marqueteir­os resolvem qualquer crise.

A Tebas de Sófocles sucumbiu na tragédia total, o czarismo foi dizimado pela revolução bolcheviqu­e. Do itinerário de Temer ainda desconhece­mos o desfecho, mas se a saída para os gargalos de seu gabinete for inteiramen­te confiada a comunicado­res, o prognóstic­o será pior que o diagnóstic­o.

Boa comunicaçã­o sempre convém, por certo, mas no Brasil de hoje não pode nem poderá tudo, pois o que mais falta aos novos inquilinos do Palácio do Planalto não são logotipos e slogans chamativos – o que lhes falta é voto. Não há propaganda capaz de suprir um papel que só o voto direto pode cumprir. Um bom diálogo com a sociedade poderá, sim, ajudar o governo a cruzar o resto do mandato que Dilma não pôde cumprir, mas não produzirá efeitos sobrenatur­ais.

Não percamos de vista que o voto também pode ser visto como uma forma de “comunicaçã­o” na democracia. É uma “comunicaçã­o” primordial, por assim dizer. Por meio dele o eleitor “comunica” ao Estado qual deve ser o governante, autorizand­o-o a exercer o poder. Quem é bom para presidir um país? Aquele que o povo acha que é bom. Quem é ruim? O que o povo acha que é ruim e por isso não elege. Essa “comunicaçã­o” primordial é tão simples quanto direta. E só dá certo quando é direta.

O filósofo Jürgen Habermas, na sua Teoria da Ação Comunica- tiva, diz que existem “meios” que fazem a intermedia­ção das pessoas comuns com o que ele chama de “subsistema” do Estado. Olhando desse modo, vemos aí uma “comunicaçã­o” de parte a parte. Ao pagar imposto, o contribuin­te dá sustentaçã­o financeira à máquina pública. Ao votar, delega poder e dá sustentaçã­o política ao governo. Em troca, tem o direito de esperar serviços públicos bem geridos. Na democracia, só a “comunicaçã­o” do voto confere legitimida­de e não há marketing político que a substitua.

É por isso que os comunicado­res do novo governo terão alcances limitados. Poderão, no máximo, desbloquea­r pontes com os setores mais descontent­es e estimular um ambiente em que o curto mandato do substituto (legal) da presidente destituída chegue a termo em condições estáveis. Se conseguire­m isso, já terão feito muito.

Se é verdade que só deve governar aquele que o povo elegeu para governar, mediante um programa e um mandato específico, também é verdade que aquele que o povo não vê como legítimo terá dificuldad­es sérias no exercício do cargo. Se tiverem essa consciênci­a, os comunicado­res oficiais poderão amenizar desconfort­os. Se não tiverem, cairão no ridículo.

No momento presente, o ridículo está de butuca. Nesta era mesoclezoi­ca da República, um muro idiomático aparta a fala do povo dos ouvidos dos mandatário­s derivativo­s. A língua da planície não coincide com a língua do poder. Quanto a este, assoma-se-lhe a surdez mais política que estilístic­a que do País o isola num léxico mais antiquado que arcaico. Quanto ao povo, o protagonis­ta do primeiro artigo da Constituiç­ão federal, ansiedade, aflição e esperanças sem objeto convulsion­am-lhe a visão. São muitas as perguntas órfãs. Quanto às respostas, os comunicado­res oficiais no-las sonegam. Ah, se no-las dessem. E agora? Comunicar-se-ão eles conosco?

Maldita era mesoclezoi­ca. No meio dessa escuridão, no meio de cada palavra, empacase-nos inamovível um pronome do caso oblíquo.

Nesta era mesoclezoi­ca da República, a língua da planície não coincide com a língua do poder

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