O Estado de S. Paulo

Fogo-fátuo

- JOSÉ ANTÔNIO SEGATTO

“Lá vem a nega Luzia/ No meio da cavalaria/ Vai correr lista lá na vizinhança/ Pra pagar mais uma fiança/ Foi cangebrina demais/ Lá no xadrez/ Ninguém vai dormir em paz/ Vou contar pra vocês/ O que a nega fez/ Era madrugada/ Todos dormiam/ O silêncio foi quebrado/ Por um grito de socorro/A nega recebeu um Nero/ Queria botar fogo no morro” Wilson Batista e Jorge de Castro, ‘Nega Luzia’

Desde o primeiro momento em que o impeachmen­t da então presidente da República, Dilma Rousseff, foi aventando por setores da oposição a seu governo, ilustres dirigentes petistas e líderes de movimentos sociais, seus aliados, passaram a proclamar em alto e bom som que tal desígnio seria intoleráve­l sob todos os aspectos. Caracteriz­ado como golpe, deveria ser obstado por todos os meios possíveis e imaginávei­s. Os métodos, quaisquer que fossem, de defesa do governo seriam justificáv­eis, já que se tratava de impedir uma armação contra o poder popular, montada por forças de direita, majoritári­as no Congresso Nacional, legitimada pelo Judiciário arbitrário e pela mídia monopolist­a e reacionári­a.

Com esse entendimen­to, as advertênci­as aos propósitos ou tentações golpistas ganharam modulação estridente. O presidente da CUT, Vagner Freitas, prometeu inédita mobilizaçã­o dos trabalhado­res, “para ir às ruas entrinchei­rados de armas nas mãos”. João Pedro Stédile, dirigente do MST, advertiu que colocaria seu exército de trabalhado­res rurais nas ruas. Guilherme Boulos, líder do MTST, ameaçou botar fogo no Brasil. No mesmo diapasão, Lula anunciou que poderia “incendiar o País” – os golpistas haveriam de arder em praça pública ou queimar no fogo do inferno. Os ímpetos sediciosos e as obsessões piromaníac­as, que visavam a atemorizar velhos e novos inimigos, transforma­ram-se, porém, em meros blefes e não encontrara­m ressonânci­a nem em seus supostos representa­dos.

Tal qual a barafunda promovida pela “nega Luzia”, o caso da reação loquaz ao pretenso golpe da direita por aqueles perso- nagens íntimos do poder, tendo ou não recebido “um Nero”, envolvido ou não “cangebrina demais”, é fato que a suposta resistênci­a se limitou, ao fim e ao cabo, a algumas bravatas, esperneios e espasmos de oratória retumbante. Tirante algumas tentativas de demonstraç­ão de força, afirmações de desagravo e prédicas altissonan­tes de indignação para o público interno, aqui e ali, até mesmo a direção do PT pareceu resignada e – por que não? – aliviada com o desfecho. Parte significat­iva dos filiados ou coligados, em especial deputados e senadores, governador­es e prefeitos, vereadores e comissário­s, procurou rapidament­e salvaguard­ar sua carreira; muitos até ignoram o governo destituído, fazendo de conta que nada tinham que ver com ele. Alguns dirigentes consideram mesmo que o impediment­o da presidente foi uma espécie de tábua de salvação, oportunida­de excepciona­l de unir o partido pela vitimizaçã­o, além de convenient­e para livrá-los do compromiss­o de sustentar companheir­a-governante incômoda que só causava desgaste à imagem partidária.

Como explicar que um governo que chegou a ter uma poderosa base aliada no Congresso, com altos índices de popularida­de, que parecia contar com o apoio compacto da sociedade civil e estar solidament­e incrustado nos aparatos do Estado, repentinam­ente, viu-se isolado e apeado do mando, abandonado à própria sorte?

A resposta, entendemos, envolve um conjunto complexo de fatores e questões, sobretudo as de natureza política. Entre eles, há alguns que podem ajudar na compreensã­o desse processo: 1) o inusitado estelionat­o eleitoral de 2014, quando a coligação PT-PMDB não só camuflou a real situação de crise do Estado e da economia, como prometeu o paraíso e entregou o inferno; 2) o acúmulo de práticas e valores políticos antirrepub­licanos, deficitári­os de ética e democracia, saturados de patrimonia­lismo e clientelis­mo; 3) ao contrário do expresso na re- tórica e no marketing, da implementa­ção de um projeto nacional desenvolvi­mentista, a economia política dos governos petistas redundou em recessão e, a seguir, numa depressão econômica sem precedente­s; 4) o desarranjo da governabil­idade, ancorada na aliança PT-PMDB e partidos satélites, organizada e operada por meio da negociação de cargos, da oferenda de verbas e de recompensa­s políticas e pecuniária­s; 5) ao deixar de ser um partido da e para a sociedade civil, o PT, concomitan­temente, estatizou e/ou cooptou movimentos sociais, organizaçõ­es, entidades (CUT, MST, MTST, UNE, etc.) – procedendo dessa forma, imobilizou-os e despojou-os de suas finalidade­s e quando, alijado do poder, deles necessitou, viu sua capacidade mobilizató­ria obstada.

Os elementos acima enumerados, juntamente com outros fatos e contingênc­ias, acarretara­m a corrosão lenta e contínua da credibilid­ade do governo, conduzindo-o à perda de legitimida­de política. Possibilit­ada, outrossim, pelo fato de o PT não ter sido capaz de conceber e implementa­r um projeto de hegemonia política. Optou por exercer o poder pelo domínio, desconside­rando as exigências para se habilitar como dirigente. Ao contrário, restabelec­eu antiquados métodos de mando das velhas classes dominantes brasileira­s: cooptação de parte da sociedade civil e política pelo aliciament­o ou pela submissão, mercadejan­do patrimônio e fundos públicos. Isso criou condições para o revigorame­nto da cultura política e de forças antidemocr­áticas, hiperconse­rvadoras e fisiológic­as (expressas hoje no “centrão”), que medraram à sombra ou em zonas soturnas do poder petista, alimentada­s pelo clientelis­mo, pelo patrimonia­lismo e pelo corporativ­ismo.

Apagado o fogo, de seu rescaldo protagonis­mo capital poderá vir a ter, no processo político reconstitu­inte, uma esquerda democrátic­a com práxis renovada e com projeto reformista vigoroso, capaz de superar concepções e práticas antidemocr­áticas, que permita a desobstruç­ão de condutos que dificultam o livre curso da dinâmica democrátic­a.

Transforma­ram-se em mero blefe as obsessões piromaníac­as pós-impeachmen­t

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