O Estado de S. Paulo

Acordo realista na Colômbia

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Embora imperfeito, como reconheceu o próprio presidente Juan Manuel Santos, o acordo assinado segunda-feira passada em Cartagena, que pôs fim ao longo conflito com as Forças Armadas Revolucion­árias da Colômbia (Farc), mereceu a pompa que marcou a cerimônia, assistida por 15 chefes de Estado e governo e pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. Foram mais de 50 anos de guerra, com um saldo sinistro de cerca de 220 mil mortos e 45 mil desapareci­dos, além de milhares de sequestrad­os pela guerrilha e quase 7 milhões de pessoas que perderam suas casas e tiveram de mudar-se para outras regiões.

Depois que acabou “a terrível noite”, o que permitiu “dar boas-vindas à democracia”, segundo Santos, a Colômbia começa agora a conviver com a nova realidade da incorporaç­ão dos ex-guerrilhei­ros à disputa política, nos quadros do Estado de Direito, em meio ao debate sobre os prós e os contras do acordo, que será submetido a um plebiscito no próximo domingo. O conflito deixou marcas profundas, que não serão apagadas facilmente, como já se percebe por exaltadas manifestaç­ões de inconformi­smo – por parte dos mais radicais – com os termos da paz alcançada a duras penas, depois de quatro anos de negociaçõe­s.

O ex-embaixador e ex-senador Luis Eladio Pérez, refém dos guerrilhei­ros de 2001 a 2008, resumiu bem, em entrevista ao jornal O Globo, o sentimento de grande parte dos colombiano­s. Ele reconheceu que uma vitória do não ao acordo terá efeito negativo tanto no país como no exterior e por isso vai votar por sua aprovação. Mas mesmo assim acha que o acordo é ao mesmo tempo “motivo de esperança e angústia”.

O que as vítimas das Farc esperam, segundo ele, é em primeiro lugar um pedido de perdão pelo que sofreram e, em segundo lugar, uma reparação, que a guerrilha recusa sob a alegação de que não tem recursos para isso. O que Eladio Pérez contesta, afirmando que “as Farc se transforma­ram num cartel de drogas dos mais importante­s do mundo e estão cheias de dinheiro”.

O pedido de perdão veio, de forma clara e direta, durante a solenidade de Cartagena. “Em nome das Farc, peço sinceramen­te perdão por toda a dor que possamos ter causado na luta”, afirmou em seu discurso o líder da guerrilha, Rodrigo Londoño, o “Timochenko”. Quanto à reparação, se não há sinal de que ela também virá, fica no ar a interrogaç­ão sobre o que já foi ou será feito com o dinheiro que o narcotráfi­co carreou para as Farc. Tendo em vista sua grande quantidade – já que esse é um dos negócios criminosos mais rentáveis do mundo –, é muito provável que ele não se tenha esgotado no financiame­nto das operações militares.

Mas o crítico de maior peso do acordo de paz – cujas opiniões por isso podem influencia­r o plebiscito – é o ex-presidente Álvaro Uribe. Um dos pontos essenciais de sua crítica é o que considera a impunidade de que gozarão de fato os líderes guerrilhei­ros. Os integrante­s das Farc considerad­os culpados de crimes serão julgados por um tribunal especial e, se condenados, poderão receber pena alternativ­a à de prisão.

“Não pedimos prisão para o guerrilhei­ro de baixo escalão, mas a impunidade aos cabeças das Farc continuará causando violência”, diz Uribe em entrevista ao Estado. Outro ponto no qual insiste é o da integração dos guerrilhei­ros na vida política. Argumenta ele que os Estados Unidos jamais dariam a Bin Laden o direito de se eleger para um cargo público. Sua proposta, para o caso de o não ser vitorioso, não é abandonar o acordo, mas revê-lo em pontos como esses.

Uribe teve um papel decisivo na luta contra as Farc. Foi durante seu governo que elas sofreram os duros golpes que as obrigaram a negociar. Mas não soube administra­r sua vitória. Como mostra a experiênci­a histórica, exterminá-las seria praticamen­te impossível e, mesmo enfraqueci­das, elas continuari­am a causar danos e a manter a inseguranç­a.

Era a hora de negociar, como percebeu Santos: “Prefiro um acordo imperfeito que salve vidas a uma guerra perfeita que siga semeando morte e dor”.

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