O Estado de S. Paulo

Desembarga­dor que anulou Carandiru mandou prender ladrão de salame

Ivan Sartori, que absolveu PMs envolvidos no massacre de 111 presos na Detenção, condenou homem a 6 meses de cadeia; réu alegou fome, mas o magistrado recusou o argumento e disse que deixar o acusado solto poria em ‘risco a incolumida­de pública’

- Alexandre Hisayasu Marco Antônio Carvalho

O desembarga­dor Ivan Sartori, relator do processo que anulou os cinco júris que condenaram 74 policiais militares acusados do massacre de 111 presos no Carandiru, mandou para a cadeia um homem acusado de furtar cinco salames de um supermerca­do em Poá, na Grande São Paulo. A decisão é de julho. No caso do massacre, Sartori foi mais longe que seus colegas: propôs também a absolvição dos PMs, mas foi voto vencido.

Na decisão sobre o acusado de furtar salames, Sartori também foi o relator da apelação do acusado, Edson Castanhal Affonso. O réu havia sido condenado em primeira instância a 6 meses de reclusão pelo furto dos salames, em 2013. Segundo a denúncia do Ministério Público, o homem escondeu os salames debaixo da blusa, na altura da cintura. Um segurança do mercado percebeu e o deteve na rua. Levado à delegacia, ele confessou o crime e disse “que estava desemprega­do e, como estava com muita fome, acabou furtando a mercadoria”.

A Defensoria Pública pediu a absolvição do acusado, consideran­do o bem furtado, os motivos que levaram o rapaz a praticar o crime e também o fato de ele ter confessado o delito. Em seu voto, Sartori negou os argumentos da defesa e disse que o acusado, que tem passagens anteriores pelo mesmo crime, é “um infrator contumaz, que faz do crime meio de vida”. Afirmou também que “reconhecer sua incidência em larga escala seria o mesmo que incentivar a prática de pequenos furtos, com o escudo do Judiciário, o que não pode ser tolerado”.

Por fim, Sartori decidiu manter a pena de 6 meses de reclusão e o pagamento de multa. Ele completa o voto afirmando que Affonso “demonstrou desenvoltu­ra na execução do delito” e que sua personalid­ade é “distorcida”, colocando em “risco a incolumida­de pública”. “Particular­idade a determinar a que seja ele segregado do meio social.” Por ordem do desembarga­dor, o réu cumpre pena em regime semiaberto, no qual o preso tem direito de sair da prisão durante o dia e deve voltar à noite.

O voto de Sartori foi acompanhad­o pelos outros dois desembarga­dores da 4.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), entre eles Camilo Léllis, que também participou do julgamento do caso do Carandiru – Léllis foi contra a absolvição dos PMs, mas votou pela anulação dos júris. O Estado procurou Sartori. A assessoria de imprensa do TJ-SP informou que o desembarga­dor não se manifestar­ia.

Rigor. Responsáve­l pela anulação dos júris do Carandiru, a 4.ª Câmara Criminal do TJ-SP tem decisões recorrente­s cujo conteúdo é considerad­o rigoroso com réus comuns, dificilmen­te revertendo penas, segundo criminalis­tas e entidades. A visão é corroborad­a por pesquisa da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), que aponta a turma como a que menos atende a apelações em toda a Corte.

A ABJ analisou em 2014 todos os acórdãos das 20 câmaras criminais do TJ-SP. A 4.ª Câmara negou 81% dos pedidos. A média das demais câmaras é de 51%. A posição da 4ª Câmara, porém, é considerad­a conservado­ra e benevolent­e em casos de violência cometida por policiais, como na decisão sobre o massacre da Detenção, em 1992.

Ex-presidente da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) e criminalis­ta, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira reconheceu a fama da turma. “É composta por magistrado­s muito técnicos, rigorosos e legalistas. A decisão de ontem ( sobre o Carandiru) tem um grande significad­o porque eles demonstrar­am que se convencera­m dos argumentos da defesa. De resto, não costumam ter Órgão criminal julgador* grande dose de humanidade.”

Diretora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), a advogada Eleonora Rangel Nacif criticou a decisão sobre o Carandiru. “O caso que é uma das maiores violações de direitos humanos do Brasil rece- beu tratamento benevolent­e com os acusados desse crime bárbaro”, disse. “A posição diverge de condenaçõe­s altíssimas impostas recorrente­mente a pequenos traficante­s, por exemplo, e outros crimes pequenos. A Câmara é reconheci- da por ser dura e raramente soltar réus.” Para Eleonora, a decisão sobre o Carandiru mostra que os magistrado­s têm uma “visão política alinhada com a repressão violenta das polícias”.

A opinião é compartilh­ada pelo presidente da ABJ, Marcelo

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ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL–27/9/2016 Julgamento no TJ-SP. A 4ª Câmara Criminal negou 81% dos recursos pedidos em 2014, de acordo com estudo da Associação Brasileira de Jurimetria

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