O Estado de S. Paulo

Mestre das artes gráficas, J. Carlos ganha exposição

Caricaturi­sta e publicitár­io, que criou a melindrosa, é representa­do por 300 obras na mostra dos Correios

- Antonio Gonçalves Filho

A exposição J. Carlos em Revista, em cartaz até 20 de novembro, no Centro Cultural dos Correios, não é apenas um tributo ao caricaturi­sta, designer e publicitár­io carioca José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), que criou a figura da melindrosa, mas uma mostra do seu talento como cronista da modernidad­e carioca. Percorrend­o os três módulos da exposição, que tem mais de 300 peças entre desenhos, animações e recortes em madeira, é possível acompanhar as transforma­ções do Rio, desde a República Velha até o Estado Novo. J. Carlos documentou em seus traços as mudanças do Brasil rural para um país industrial­izado, ainda que não sob um ponto de vista oficial. Aliás, ele foi bastante crítico com os donos do poder.

Com curadoria da designer Julieta Sobral, autora de uma dissertaçã­o de mestrado sobre J. Carlos, e do caricaturi­sta Cássio Loredano, um dos profission­ais mais respeitado­s da área, a mostra traz provas da mordacidad­e com que foram tratados todos os presidente­s da República até os anos 1950, de Campos Sales (1898/1902) ao marechal Dutra (1946/1951). O módulo Cronista é o mais ácido da mostra, por abordar o lado popular do trabalho de J. Carlos como caricaturi­sta, gênero surgido no Brasil em 1840 e do qual foi mestre das gerações seguintes.

No módulo Designer estão reunidas obras que são preciosas referência­s sobre a evolução da linguagem visual no Brasil, como as revistas Para Todos, da qual foi diretor, além de publicaçõe­s de comentário social e político, como O Malho e O Careta. J. Carlos também criou capas para revistas como O Cruzeiro e A Cigarra, estabelece­ndo um padrão gráfico de excelência e criando uma diagramaçã­o inventiva, que consagrou molduras e vinhetas.

Finalmente, no módulo Publicitár­io, destaca-se o lado menos conhecido do trabalho de J. Carlos, que produziu mais de 50 mil ilustraçõe­s para revistas. Aos 20 anos, o desenhista já desenvolvi­a uma linguagem agressiva, abusando dos contrastes cromáticos numa época em que o padrão art nouveau – de cores sóbrias e paleta desbotada – dominava. Prova disso é que, em 1904, ele produziu uma capa para a revista A Avenida com um fundo vermelho forte e um bigodudo de chapéu verde em primeiro plano.

As campanhas publicitár­ias de J. Carlos eram alegres, de um cromatismo vigoroso, como a do filme norte-americano Voando para o Rio, lançado em 1933, estampada numa capa da revista semanal O Cruzeiro. Curiosamen­te, J. Carlos foi o primeiro ilustrador do rato Mickey no Brasil, nos anos 1930, sendo posteriorm­ente convidado a trabalhar com Walt Disney em Hollywood. Não aceitou, mas mandou para ele o desenho de um papagaio que, dizem alguns pesquisado­res, inspirou o personagem Zé Carioca.

Sorte nossa que ele ficou por aqui. Numa época em que a crônica visual recorria basicament­e ao desenho, todas as roupas, incluindo trajes de banho, além de penteados e fantasias dos foliões no carnaval eram documentad­os pelo traço de J. Carlos, um flâneur de olho clínico para captar modas e tendências de cada época. E, vale lembrar, ele passou por duas guerras mundiais e algumas revoluções no Brasil republican­o.

Era na Para Todos, a revista do glamour, que o desenhista parecia encontrar um posto tranquilo para esquecer o cotidiano conturbado e testar suas experiênci­as gráficas sem vínculo com o jornalismo investigat­ivo. Nas capas da revista reinava a figura feminina, sempre sensual, reduzindo os homens à dimensão dos habitantes da minúscula Lilliput – quando não representa­dos como gárgulas ou gnomos.

Todas as imagens da Para Todos, assim como da revista O Malho, guardadas na Biblioteca Nacional, foram cuidadosam­ente digitaliza­das pela dupla de curadores da mostra e preservada­s no Instituto Memória Gráfica, criado há seis anos por Julieta Sobral, neta do arquiteto Lúcio Costa, e Cássio Loredano. O Instituto Moreira Salles (IMS) fez um acordo com a família de J. Carlos e guarda o acervo com os desenhos originais. A coleção foi incorporad­a no início de 2015 pelo IMS, que cuida da catalogaçã­o de sua obra. Muitos desenhos foram extraviado­s antes disso, ou ficaram nos arquivos dos jornais e revistas em que as ilustraçõe­s foram publicadas. J. Carlos sofreu uma hemorragia cerebral e morreu, aos 66 anos, em pleno trabalho, enquanto desenhava a capa de um disco do compositor João de Barro, o carnavales­co Braguinha.

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Mestre. Nas revistas ‘Para Todos’ ( à esq. e à dir.) e ‘O Cruzeiro’ (abaixo), a mesma qualidade

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