O Estado de S. Paulo

Montagem expõe a atualidade do circo de horrores

Diretores Cibele Forjaz e Wagner Antonio se valem de ironia e trabalho físico em sua versão de ‘O Homem Elefante’

- CRÍTICA: Maria Eugênia de Menezes

Tudo aquilo que foge à regra costuma causar repulsa. E igual dose de encantamen­to. No século 19, os circos eram o espaço privilegia­do para a exibição do se considerav­a desvio ou aberração: homens com duas cabeças ou com quatro pernas, crianças sem braços, mulheres com o rosto coberto de pelos. A prática de expô-los era comum e foi em um desses shows de horrores que o mundo conheceu o Homem Elefante: personagem verídico que dá nome ao espetáculo da Companhia Aberta, dirigido por Cibele Forjaz e Wagner Antonio.

Não é a primeira vez que a história do britânico Joseph Merrick inspira a ficção. Em 1977, Bernard Pomerance escreveu a peça: sucesso imediato na Broadway, capaz de levar David Bowie aos palcos e de inspirar, logo em seguida, o filme homônimo de David Lynch. Na obra, a trajetória de um homem de aparência tão grotesca – com deformaçõe­s no rosto e por todo o corpo – que se tornaria celebridad­e da era vitoriana. Descoberto em um picadeiro pelo médico Frederic Trevis, Merrick passou a morar no hospital de Londres, onde seria objeto de estudos, mas também a frequentar a alta sociedade e a gozar da amizade de nobres, como a rainha Vitória.

Existem fotografia­s que docu- mentaram a imagem do verdadeiro Homem Elefante. Ao tentar reproduzi-la, porém, dificilmen­te uma encenação teria êxito. Como representa­r o que provocava tanto assombro e abjeção? Talvez, não exista um meio único de caracteriz­ação. Diversas máscaras e artifícios – apliques plásticos, pedaços de espuma, panos e ataduras – vêm compor o personagem vivido por Vandré Silveira. Assim, cada uma de suas aparições lem- bra um caleidoscó­pio, a entregar uma nova imagem do ser monstruoso.

Outro meio de transcende­r o que se diz em cena é o trabalho físico do protagonis­ta. Sua composição corporal opõe-se às fragilidad­es denotadas pelo restante do elenco, com evidentes dificuldad­es de manejar devidament­e tantos os diálogos quanto os momentos de silêncio. Cabe ao corpo de Silveira materializ­ar as transforma­ções do personagem – da fragilidad­e inicial ao desembaraç­o gradativo, captando as tentativas de normatizaç­ão de seu comportame­nto. Para aceitá-lo, era preciso reduzir sua animalidad­e. Para deixá-lo vivo, havia que se matar uma parte sua. O perfil encurvado, mãos enrijecida­s e pernas inertes cederão espaço a gestos desenvolto­s. Trabalho que a luz de Wagner Antonio amplifica, valendo-se de um vocabulári­o visual que evoca o teatro de sombras.

Conhecida por seu teatro lúdico, focado no prazer do jogo e na cumplicida­de com o espectador, a diretora Cibele Forjaz se utiliza desses pressupost­os nessa montagem da carioca Companhia Aberta. Transforma a plateia em cúmplice das ações, que se sucedem basicament­e em dois espaços: lúgubres feiras de variedades e um frio cômodo hospitalar. Vale-se da ironia para expor quão contemporâ­nea soa essa fábula tétrica: repetidame­nte, faz referência aos atuais programas de auditório, com seus jargões e rituais de humilhação. Ao expor mazelas em telas e redes digitais, afinal, não estamos tão longe das crueldades que vicejavam nas lonas circenses do século 19.

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RODRIGO CASTRO/DIVULGAÇÃO Caleidoscó­pio. Diversos artifícios compõem o personagem

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