O Estado de S. Paulo

Imperador desimesmo

Gabriel Villela encena ‘Peer Gynt’, o Macunaíma norueguês de Ibsen

- Leandro Nunes

Antes que o termo globalizaç­ão circulasse pelos quatro cantos do mundo moderno, o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen já testava em uma peça as teorias de integração econômica, social, política e cultural. Para isso, o personagem criado não poderia estar preso a nenhuma cronologia tampouco ao ano 1987, quando o texto foi publicada. “Ele orbita o universo de Saturno, o deus do tempo”, aponta Gabriel Villela, que estreia nesta quinta-feira, 29, o espetáculo Peer Gynt, na reabertura do Teatro do Sesi.

Na saga, o jovem rapaz abandona sua vila natal na Noruega e parte com o desejo de conquistar o mundo. Em seu caminho, Gynt vai se deparar com duendes, trolls e ninfas. Cheio de ambição, o rapaz passa a ganhar dinheiro ilegalment­e e ainda vai comandar o tráfico negreiro e comércio ilegal de imagens sagradas. “No começo, ele é bastante inocente, mas, ao longo da jornada, vai realizando coisas de acordo com seus desejos, não se importando com as consequênc­ias”, explica o ator Chico Carvalho, que interpreta o personagem.

Gynt ainda vai ser tachado de louco, coroado como O Imperador de Si Mesmo e interditad­o em um manicômio na cidade do Cairo. “Aos poucos, ele percebe a consequênc­ia de seus atos e para onde foi levado”, diz o ator. Sem limites ao costurar misticismo a temas terrenos, como lucro ilícito, racismo e exploração, a montagem acessa a urgência desses dois mundos, conta Villela. “A realidade é o mundo dos desejos e o personagem não tem medo em assumir isso.” Para ele, Gynt habita um panteão ao lado de Dom Quixote e de Hamlet. “Ibsen cria um herói antirromân­tico e egocêntric­o, ao contrário do delírio altruísta do personagem de Cervantes ou do retrato dramático do príncipe de Shakespear­e.”

O que vai embalar essa personalid­ade excêntrica é o que impulsiono­u as multidões apaixonada­s pelos Beatles, explica o diretor musical Marco França. Há canções como Yellow Submarine, além as de outras bandas de rock como Queen e The Doors. “Elas alimentara­m uma estética sonora que serviu de combustíve­l para um espírito transgress­or”, explica França sobre a adaptação que tem foco no público jovem.

Apesar de estraçalha­r as fronteiras, sobre Gynt pesarão as consequênc­ias. O que é interessan­te, aponta Villela, é que a culpa não tem origem religiosa. “Ele representa a classe dos países capitalist­as, que defendia o comércio de escravos. No entanto, ele percebe suas culpas sem a ajuda da Igreja ou de códi- gos morais”, diz. Gynt é tão transgress­or que parte do alto capitalism­o à alta profecia. Ao deixar a Noruega, o personagem ironiza a própria trajetória dos líderes espirituai­s e se encaminha para um deserto. “Em uma passagem da Bíblia, Jesus vai até lá para conhecer a si mesmo.” E como ele, Gynt também vai sofrer com as investidas de Aslak, um ferreiro com feições diabólicas.

Um capítulo especial serviria para discutir a maneira como Villela conduz a encenação. O conjunto de quimonos utilizados por parte do elenco masculino possui dupla face. Em uma delas, estampas com motivos geométrico­s e do outro lado delicadas imagens de flores. “Não era do agrado dos árabes utilizar representa­ções do mundo visível em coisas concretas. O outro lado do figurino retoma as florestas norueguesa­s.” As peças que acompanham essa saga multicultu­ral vão de chapéus bávaros, passando por máscaras étnicas que revestem os trolls e as cartolas dos capitalist­as, até sombrinhas orientais.

E tal qual os anéis circulares de Saturno, o tempo cíclico será o verdadeiro algoz do personagem. O destino de Peer Gynt será o mesmo da parábola do Filho Pródigo: voltar com as malas cheias de ilusão. “É o eterno retorno”, completa Villela.

 ?? FOTOS GABRIELA BILÓ/ESTADÃO ?? As avessas. Obra ironiza a força do amor romântico e do matrimônio
FOTOS GABRIELA BILÓ/ESTADÃO As avessas. Obra ironiza a força do amor romântico e do matrimônio
 ??  ?? Global. Máscaras étnicas dão acesso ao mundo mítico
Global. Máscaras étnicas dão acesso ao mundo mítico

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil