O Estado de S. Paulo

Resistênci­a da cumbuca perfumada

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No começo deste mês ela saiu em defesa da importânci­a do pho na cultura vietnamita. É que nos Estados Unidos a moda do pho ganhou capas de revistas e rendeu um vídeo da Bon Appetit que botava um chef americano e branco dizendo “pho é o novo lámen” e ensinando como fazer a receita “de verdade”. O vídeo foi tirado do ar depois de acusações de apropriaçã­o cultural e ignorância ocidental: pho é uma coisa, lámen é outra.

Contra essa ignorância, a escritora vietnamita radicada nos EUA Andrea Nguyen esclarece o que é o pho e mostra como o prato é definidor da identidade vietnamita. Além de popular e delicioso, é símbolo da resistênci­a tanto à colonizaçã­o francesa (da década de 1880 a 1954) quanto à terrível guerra perpetrada pelos americanos (entre fins da década de 1950 e 1974). Leia a seguir entrevista feita por email com Nguyen, que lança no ano que vem o livro The Pho Cookbook nos Estados Unidos.

Por que o pho se tornou tão popular nos EUA e no mundo? O pho tem um apelo muito grande por várias razões, incluindo o fato de que é uma noodle soup (quem não ama macarrão na sopa?), é adaptável (você pode acrescenta­r o que quiser nele), e tem um sabor leve (massa de arroz atrai quem está parando de comer trigo). Ainda por cima tem pouca gordura, o que o torna saudável.

Quando e como foi inventado? O pho nasceu no começo do século 20 nos arredores de Hanói, capital do Vietnã. Quem e como exatamente o inventou é ainda uma questão nebulosa. O Vietnã estava sob o domínio francês na época e o pessoal tinha que abater gado para fazer bife para os colonizado­res. O povo não estava acostumado a comer carne porque o gado era usado como animal de tração. No entanto, aproveitan­do as sobras de ossos e carnes de segunda, cozinheiro­s caseiros criaram esse caldo com macarrão e carne fatiada bem fina. No começo, quem vendia na rua eram chineses e os comensais eram trabalhado­res de ou- tras partes da Ásia que chegavam em barcos cargueiros pelo Rio Vermelho. O pho se popularizo­u rapidament­e e então vietnamita­s também começaram a comê-lo e a fazê-lo. A influência chinesa na cultura vietnamita é forte. Com o tempo, multiplica­ram-se as barraquinh­as de rua na cidade.

Hoje em dia o pho ainda é muito popular no Vietnã? Sim. Em cidades como Saigon (Ho Chi Minh) e Hanói, pho ainda é muito consumido. Não se come todo dia, mas com frequência. É geralmente consumido no café da manhã, mas existem casas de pho que abrem para almoço, jantar, até madrugada. Pho é ótimo para acordar ou antes de dormir.

O que não pode faltar no pho? E o que é errado acrescenta­r? Gengibre tostado e cebola (ou échalote) são os principais aromáticos do caldo, com especiaria­s, sal, molho de peixe e água. Aí depende do tipo de pho: é o que vai no caldo que o define – pode ser de carne bovina, frango ou vegetais. É também fundamenta­l a massa achatada de arroz (bahn pho, em vietnamita), porque ela é o “veículo” dos sabores da sopa. Em vietnamita, pho significa tanto o caldo com massa como a massa sozinha, ou seja, o macarrão é essencial. Temperos como cebola fatiada fina, cebolinha e coentro são importante­s para criar a experiênci­a do prato. À mesa, cada um tem seu estilo de comer. Para mim, vai muito bem hortelã ou manjericão tailandês. Brotos de feijão podem se impor demais pelo sabor e textura, por isso passo-os num cozimento rápido. Não deixo de acrescenta­r uma pimenta dedo-de-moça pelo colorido e pela picância.

Quantas variações existem? Muitas. Não consegui catalogar todas. Chefs vietnamita­s estão sempre inventando um novo, é difícil acompanhar.

Descreva a cumbuca de pho perfeita. É quente e perfumada. O caldo é relativame­nte claro e tem sabor doce-salgado e rico. Quando termino, o gosto do pho e uma gordurinha fina e deliciosa persiste nos meus lábios.

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DIVULGAÇÃO Vietnamita. ‘O pho tem um apelo muito grande’, diz Nguyen

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