O Estado de S. Paulo

Globeleza: um vestido e menos rebolado

Mudança no visual da musa do carnaval da TV Globo pode ser atribuída a fase mais conservado­ra da sociedade

- Roberta Pennafort /

Todo carnaval é assim: antes da festa, vêm as polêmicas. Desde o dia 8, a 50 dias da folia, surgiu a primeira delas. A Globeleza, musa do carnaval da TV Globo, emissora detentora dos direitos de exibição dos desfiles das escolas de samba do Rio, o principal do País, passou a sambar vestida, e não mais com o corpo nu, pintado com purpurina. Erika Moura, a atual Globeleza, usa roupas que remetem a manifestaç­ões culturais Brasil afora, e tem performanc­e menos sensual do que as de outros anos.

Houve comemoraçã­o por parte de mulheres que se sentiam aviltadas com o que considerav­am “objetifica­ção do corpo feminino”. Houve quem consideras­se a decisão da Globo um reflexo de uma onda conservado­ra no País. Ela estaria presente na eleição de políticos ligados a religiões – no Rio, o novo prefeito é Marcelo Crivella (PRB), é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus – e na reverberaç­ão de pautas como a do Estatuto da Família.

Além de estar fantasiada, este ano Erika economiza no rebolado, e aparece cercada por ou- tros dançarinos, também caracteriz­ados com roupas alusivas à folia de outros Estados – até então, a Globeleza sambava sozinha. A Globo, porém, desconvers­a sobre as mudanças.

“O carnaval é uma festa popular, vanguardis­ta, inclusiva, contestado­ra, múltipla. Já há algum tempo, estudamos uma maneira de enriquecer a vinheta com outros ritmos do carnaval brasileiro, representa­ndo a riqueza da diversidad­e dessa festa popular”, diz nota oficial da emissora. “Assim, chegamos a esse formato, que une o já tradiciona­l carnaval de avenida, com símbolos e elementos do frevo, do axé, do maracatu e do bumba meu boi. A boa acolhida do público mostra que fomos no caminho certo. Ampliamos o significad­o do carnaval Globeleza, uma marca importante da Globo, e o público entrou nesta festa conosco.”

No papel desde 2015, a dança- rina paulistana Erika Moura, de 24 anos, responde na mesma linha: “Sou adepta de mudanças. Independen­temente de estar com o corpo pintado ou coberto, está valendo, estou fazendo a minha arte. Meu corpo é meu veículo de trabalho. Não me sinta gostosa, me sinto bonita”, contou Erika, que acredita que a vinheta agora tem caráter mais nacional. “Muitas pessoas estão se vendo ali.”

Embalada por um samba de Jorge Aragão e Franco Lattari, hoje na voz do cantor Neguinho da Beija-Flor, a Globeleza foi criada pelo designer Hans Donner. A primeira foi Valéria Valenssa, que ficou no posto de 1993 a 2005, com variações nas pinturas: ora seus seios ficavam totalmente à mostra; ora a cobertura era mais extensa. Invariavel­mente, dava entrevista­s contando como era ficar 12 horas imóvel para a aplicação da purpurina. Ao jornal carioca Extra, Valéria, hoje com 45 anos e mãe de dois meninos, disse que a mudança seria impensável no passado. “Os tempos são outros.”

Em texto viralizado no Facebook no pré-carnaval de 2016, as feministas negras Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro criti- caram a hipersexua­lização da mulher negra representa­da pela Globeleza e pediam o fim da personagem. Este ano, aprovaram a troca. “A verdade nua e crua é que a Globeleza, atualmente, só reforça um lugar fatalista, engessado, preestabel­ecido para a mulher negra numa sociedade brasileira racista e machista e esse lugar fixo precisa ser rompido, começando com o fim desse símbolo/personagem. Não aceitamos ter nossa identidade e humanidade negadas por quem ainda acredita que nosso único lugar é aquele ligado ao entretenim­ento via exploração do nosso corpo. (...) Não queremos protagoniz­ar o imaginário do gringo que vem em busca de turismo sexual. Basta!”

A pesquisado­ra de carnaval Rachel Valença, que acompanha os desfiles desde 1960, credita a mudança na imagem da Globeleza a um aceno ao conservado­rismo. “Ela representa­va a passista de escola de samba e nunca foi vulgar. Na dança, a nudez não é sensualiza­da nem imoral, é uma forma de expressão corporal. Cobrirem esse corpo é um retrocesso, é moralismo e correspond­e a uma fase de conservado­rismo da nossa sociedade.”

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RAMON VASCONCELO­S/DIVULGAÇÃO
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ESTEVAM AVELLAR/DIVULGAÇÃO

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