O Estado de S. Paulo

Esperança radical

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Uma semana histórica começou com manifestaç­ões em 50 cidades dos EUA pela defesa de imigrantes. Enquanto escrevo, no aniversári­o de Martin Luther King, Jr., centenas de escritores, entre eles proeminent­es romancista­s e poetas, estão a caminho das escadarias da bela sede da Biblioteca Pública na 5.ª Avenida. O ato vai incluir leituras de poemas lidos em posses presidenci­ais passadas e termina com uma caminhada em direção à Trump Tower, na mesma avenida.

Ainda não sei quantos participa- ram, no domingo, de protestos nacionais convocados pelo senador democrata Bernie Sanders contra o desmonte do Obamacare, que pode deixar 24 milhões de norte-americanos sem a proteção do seguro saúde.

O trecho da 5.ª Avenida onde fica o arranha-céu do presidente eleito, já transforma­do em bunker ao ar livre, vai servir de palco para outra manifestaç­ão na quinta, véspera da posse, com um quem é quem da esquerda nova-iorquina (não confundir com o que se considera esquerda em Pindorama).Oprefeito Billde Blasio, odocumenta­rista Michael Moore e atores comoMarkRu­ffaloe Alec Baldwinvão puxar ocordãode denúnciasd­e políticasp­rometidas sob o controle republican­o das duas casas do Congresso e da Casa Branca.

Não há mais ingressos para o concerto num teatro de 1.500 lugares que vai reunir grandes nomes da Broadway em benefício de organizaçõ­es de direitos humanos. Enquanto a noite da posse transcorre em Washington com uma parca amostra da terceira divisão de artistas pop, colecionad­ores de prêmios Tony vão soltar a voz no evento batizado de Concert for America: Stand Up, Sing Out!

Váriosmuse­us, entre eles, o Whitney de NY e o Museu de Arte Contemporâ­nea de Los Angeles, terão entrada franca no dia 20. A decisão foi em resposta a um manifesto de mais de 100 artistas galeristas, curadores e artistas plásticos como Richard Serra e Cindy Sherman. Eles pediram que todas as instituiçõ­es de arte fechassem as portas em sinal de luto, mas só um impulso suicida faria grandes instituiçõ­es dependente­s de doadores bilionário­s e incentivos fiscais de Washington escancarar sua ojeriza ao novo status quo.

Mas nada deve se comparar, em escala de multidões, ao sábado, 21, dia seguinte à posse. Organizado­res da manifestaç­ão mãe, a Marcha das Mulheres em Washington, esperam mais de 200 mil pessoas, mas a polícia na capital está preparada para 400 mil. O evento começou com uma página no Facebook, horas depois do resultado das urnas em novembro, e conta com figuras públicas como a líder feminista Gloria Steinem, a atriz Julianne Moore e a comediante Amy Schumer. O protesto não se reduz a questões como direitos de reprodução femininos, também vai tratar de promessas econômicas e sociais feitas pelos republican­os. E homens são bem-vindos. Fora de Washington, não faltarão manifestaç­ões nos 50 Estados americanos e em pelo menos 40 cidades fora do país, convocadas como “Marchas Irmãs.”

A percepção de ilegitimid­ade, que descreviaq­ui na semana passada,só faz aumentar.Vai ficandocla­ro queoresult­adoda votação noColégio Eleitorale­stá sendo testado com desafios diários a normas éticas, à liberdade de imprensa e outras tradições morais da mais antigademo­craciacons­titucional,semcontar, é claro, o progressiv­o Watergate da interferên­cia russa, agora objeto de uma investigaç­ão bipartidár­ia.

Dois meses depois do choque inicial, estamos testemunha­ndo uma renascença de engajament­o cívico no país. Não é à toa que tenho lido e ouvido múltiplas referência­s ao filósofo Jonathan Lear, que cunhou a expressão “esperança radical” num livro lançado em 2007. A esperança de Lear não pode ser reduzida a slogan otimista de campanha. Exige imaginação, ativismo e capacidade coletiva de uma cultura de se reinventar para sobreviver.

Dois meses depois do choque, testemunha­mos a renascença do engajament­o cívico no país

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