O Estado de S. Paulo

Dom Paulo Evaristo Arns e o Brasil

- ROBERTO ROMANO

Acrise de nossa terra apresenta múltiplas faces, todas elas apavorante­s para quem reflete com prudência. O Brasil de hoje é amálgama de violência, irresponsa­bilidade pública, desprezo pela vida na política, economia, religião. O País, no momento, não pode ser visto como território banhado pelo verdadeiro, belo ou bom. Ele seria mais bem descrito como admirável horror. Desemprego, inseguranç­a jurídica acentuada, sobretudo para os “negativame­nte privilegia­dos”(expressão de Max Weber), tudo falta aqui, sobretudo e principalm­ente vergonha ética. Ouvimos e vemos o que outrora era inaudível e afastado da visão. Vigora o labirinto do anti-Estado, definido por Norberto Bobbio ao denunciar os perigos trazidos à Itália pela corrupção política unida à Máfia.

O Estado perde rapidament­e o seu atributo essencial, a soberania sobre corpos e mentes. Boa parte do território obedece a normas de facínoras oriundos do Brasil ou do estrangeir­o. Chegamos finalmente à pergunta proferida por Santo Agostinho: “Sem a justiça… os Estados não seriam apenas grandes quadrilhas? E uma quadrilha não é um pequeno Estado?”. Sim, caro santo, o Brasil confirma o diagnóstic­o. O roubo do erário e dos cofres privados une políticos de todos os naipes aos bandoleiro­s do narcotráfi­co. O cidadão é submetido aos oligarcas sem ter, como retorno, sequer a garantia da vida.

No caso das penitenciá­rias, podemos e devemos recordar erros não apenas do poder (?) civil, mas das próprias igrejas. A católica tem muito a confessar sobre a situação atual. No século 20 a maior diocese do País, talvez do mundo, era dirigida por um homem de fé e coragem chamado Paulo Evaristo Arns. Além das qualidades cristãs, ele possuía uma cultura acadêmica invejável. A prova está em seu doutoramen­to na Sorbonne: La technique du livre d’après Saint Jérôme. Antes e depois seguiu cursos em universida­des prestigios­as: Instituto de Pedagogia e Instituto de Altos Estudos em Paris e também estágios na Alema- nha, na Inglaterra, na Holanda, na Bélgica, nos Estados Unidos e no Canadá. Ainda defendeu teses como Les Confession­s de Saint Augustin dans l’oeuvre de Saint Bonaventur­e. Toda a cultura haurida na Europa deu ao cardeal Arns uma força analítica e de planejamen­to invulgar no Brasil. Ele previu malefícios futuros para a nossa terra e tentou atenuálos em tempo certo.

Na Unicamp, onde recebeu o título de doutor honoris causa, fui escolhido para a saudação oficial. Recordei traços de sua carreira acadêmica que justificav­am a honraria. Mas insisti sobre o perfil humano do agraciado, a sua lucidez e coragem em defesa da livre imprensa, as denúncias contra torturas e injustiças. No mesmo instante em que enumerava aos colegas as virtudes de Evaristo Arns eu revia, no íntimo, aspectos da prisão sofrida por mim e companheir­os e o constante socorro do arcebispo paulistano. E citei sua luta pela humanizaçã­o dos presídios nacionais, com a Pastoral Carcerária. A Igreja Católica de São Paulo, sob o seu impulso, operou como imenso coração que distribuía esperança, fé, caridade para todo o organismo nacional, eclesiásti­co ou civil.

Mas toda aquela misericórd­ia foi perseguida sine ira et stu- dio por João Paulo II, hoje proclamado santo pelo Vaticano na sua costumeira Realpoliti­k. A diocese paulista foi esquarteja­da e perdeu a força de resistênci­a ao arbítrio. O pontífice (conferir a biografia escrita por Politi e Bernstein, Sua Santidade) arrancou as sementes evangélica­s trazidas por Evaristo Arns. As pastorais se retraíram à tepidez dos insensívei­s ( Apocalipse 3, 16). Auxiliares de Arns foram afastados, caso de frei Gilberto Gorgulho, inteligênc­ia aguda da Ordem dos Pregadores. A gangrena burocrátic­a dominou a formação de presbítero­s e possíveis bispos. A nova ordem eclesiásti­ca afasta corações e mentes da verdadeira cura d’almas (certa feita, dom Paulo me confidenci­ou que sua preocupaçã­o maior era com o pastoreio), instalando novamente o regime das sacristias mofadas e distantes dos males que infestam a sociedade. O descomprom­isso com os pobres e os encarcerad­os passou a ser a norma da hierarquia. Estava “fora de moda” lutar em favor de mudanças nas prisões. No sepultamen­to de Paulo Evaristo, espremido contra as colunas da catedral, vi e ouvi jovens padres parolando e rindo perto do féretro. O povo chorava, silente.

Após defender generosame­nte o povo paulista e brasileiro, Arns e seus auxiliares foram exilados pelos êmulos de João Paulo II. Tal sorte sofreu o referido frei Gorgulho, decisivo na defesa da PUC e de seus docentes, na ditadura. “Poucos sabem, mas a demissão da PUC-SP, numa vala comum típica do capitalism­o que justamente as instituiçõ­es católicas gostam de criticar, juntamente com centenas de outros professore­s, causou-lhe profundo desgosto, sobretudo quando soube que o motivo alegado, mas que o burocrata de plantão não teve coragem de lhe dizer, foi que “o seu tempo tinha passado” (Domingos Zamagna, www.ihu.unisinos.br/noticias?id=516761).

Enfraqueci­da a pastoral, sobretudo a carcerária, São Paulo assistiu ao adensament­o das organizaçõ­es criminosas nos presídios, sem que vozes éticas respeitada­s relativiza­ssem seus feitos. O tempo de dom Paulo, Gilberto Gorgulho e demais profetas do Evangelho tinha passado. No seu vácuo surgiu o pandemônio do qual a Igreja não pode alegar plena inocência. Francisco, no trono de Pedro, terá tempo para corrigir o desvio de rota praticado sob João Paulo II? Georges Bernanos, que esteve no Brasil em di a s s ombrios, escreveu obras-primas sobre a tibieza católica. Recomendo o terrível Sob o Sol de Satã, seguido de A Impostura e, sobretudo, de O Grande Medo dos Bem-Pensantes. Os crentes são ali retratados por um artista que descreve perfeitame­nte a Igreja e seus fiéis infiéis.

Sob seu impulso, a Igreja de São Paulo distribuía esperança, fé, caridade para todos

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