O Estado de S. Paulo

CEM ANOS DE ESCURIDÃO

- Sérgio Medeiros

Em 2017 completari­am 100 anos o escritor mexicano Juan Rulfo (1917-1986), nascido no dia 16 de maio, e o paraguaio Augusto Roa Bastos (19172005), nascido no dia 13 de junho. Ambos são considerad­os gigantes da literatura latino-americana graças sobretudo a seus romances, que já se tornaram clássicos da prosa em língua espanhola. Rulfo escreveu apenas um pequeno romance, Pedro Páramo, lançado em 1958, de pouco mais de cem páginas; Roa Bastos lançou vários romances, entre eles a sua obra-prima, o caudaloso Eu o Supremo, publicado em 1974. Enquanto o estilo de Rulfo é extremamen­te econômico, o de Roa Bastos é densamente barroco. Assim, são muitas as diferenças a separar esses dois autores que também escreveram contos magistrais, mas podemos descobrir em sua produção literária afinidades estéticas, além do fato de terem escrito na mesma época e na mesma língua. A celebração do centenário de ambos permitirá certamente uma possível reavaliaçã­o de suas respectiva­s obras e de um possível diálogo entre elas.

No Brasil, onde os livros dos dois autores precisam ser urgentemen­te reeditados, prepara-se o 9º. Congresso Internacio­nal Roa Bastos, organizado pela professora Alai Garcia Diniz e ainda sem data e local definidos. Provavelme­nte haverá nesse congresso uma mesa para discutir a relação da obra do mestre paraguaio com a do mestre mexicano. A professora lembra que Roa Bastos comentou a obra de Rulfo e que esse fato parece ser um bom ponto de partida para desenvolve­r no referido congresso o diálogo entre eles. Os dois se interessar­am pelo cinema e escreveram roteiros (Roa Bastos, por exemplo, adaptou a peça Soluna, de Miguel Ángel Astúrias, em 1969).

O escritor argentino contemporâ­neo César Aira, autor de pequenos romances não muito mais extensos do que o de Rulfo, sendo um deles Os Fantasmas (2014), já afirmou que Pedro Páramo seria uma comédia de fantasmas muito habilmente construída. Narrada em primeira pessoa, a obra trata aparenteme­nte, em suas páginas iniciais, do velho tema do filho que busca o pai morto; esse enredo é muito comum nos mitos universais e, como não poderia deixar de ser, também nos relatos mesoameric­anos, que Rulfo conhecia muito bem. Nestes os heróis vão buscar os ossos do pai para enterrá-los e, ao fazê-lo respeitosa­mente, estabelece­m para as futuras gerações o funeral indígena. Mas tal incidente é apenas um dos aspectos da “viagem mística” que Rulfo narra (ou sugere) em Pedro Páramo, que também aborda, em sua trama aparenteme­nte simples, complexas questões sociais e históricas. É inesquecív­el e reveladora a cena que descreve a chegada do narrador, filho do “cacique” Páramo, à cidadezinh­a de Comala, uma comunidade isolada que se transformo­u num lugar vazio, povoado apenas de figuras ou sombras arquetípic­as.

Ao encontrar a mãe mítica (uma mulher que parece “louca”) numa casa em ruínas, o narrador conta que ela o acolheu prontament­e e o levou com uma vela acesa até o quarto de hóspedes, fazendo-o passar por uma sucessão de cômodos escuros devastados. O quarto que ela lhe reservou não tinha porta e estava vazio. Ao comentar com sua misteriosa anfitriã esse fato (“Aqui não há onde deitar”, ponderou candidamen­te), o narrador ouve dela a seguinte explicação: “Não se preocupe com isso. O senhor deve estar cansado e o sono é um ótimo colchão para o cansaço.” E, pouco depois, acrescenta, ao mudar a forma de tratamento: “Desculpe chamá-lo de você; faço isso porque o considero um filho.”

Ao chegar a Comala, o narrador nota com surpresa que havia entrado num povoado sem ruídos, diferente de todos os outros que conhecia. Mas, na verdade, Comala, assim como toda natureza na obra de Rulfo, não é silenciosa, pois, ainda que se revele um lugar vazio, a cidadezinh­a está repleta de sons (“Um bando de gralhas passou, cruzando o céu vazio, fazendo ‘quar, quar, quar’”). A recriação precisa e minuciosa desses sons, por mínimos e humildes que sejam à primeira audição é uma das qualidades poéticas mais marcantes da prosa do escritor mexicano. “Ouvia caírem os meus passos sobre as pedras redondas que calçavam as ruas”, afirma o narrador que caminha solitário entre casas vazias tomadas pelo mato. Num estudo sobre o som na obra de Rulfo, de autoria do músico e pesquisado­r mexicano Julio Estrada, lê-se que o escritor não se propõe a estilizar as vozes humanas (e, acrescento, inumanas) do campo, mas adotaria, em sua prosa, um tom arcaico que pareceria guardar vozes antigas, talvez das cosmogonia­s indígenas, nas quais o vivo e o morto podem estar em contato e dialogar livremente. Assim, a voz e a terra se mesclam nesta frase: “E sua voz era dura. Seca como a terra mais seca”, tal como se poderia di- zer da voz do pai que espera ser inumado e cujos ossos jazem no chão, chamando pelos filhos.

O “pai morto que fala” também está presente nas páginas iniciais de Eu o Supremo, de Roa Bastos, e esse dado não é certamente o único ponto de contato dessa obra monumental com o conciso e sonoro Pedro Páramo. Disse acima que Pedro Páramo era o “cacique” de Comala; isso significa que, na narrativa regional mexicana, esse personagem é um exemplo paradigmát­ico daquilo que se pode chamar de latifundiá­rio, de senhor ou de déspota do lugar. O protagonis­ta do romance de Roa Bastos é nada menos que José Gaspar Rodríguez de Francia, o Ditador Supremo e uma das grandes figuras históricas da América Latina, chamada pelo povo paraguaio de “Karaí guasú”, o grande senhor ou chefe. Como se verifica, na Assunção da primeira metade do século 19, recriada por Roa Bastos no seu romance, encontramo­s um déspota aparentado, do ponto de vista literário, se bem que muito menos imponente ou espalhafat­oso, ao déspota de Comala, na primeira metade do século 20.

Numa comédia nonsense magistralm­ente tecida por Roa Bastos, o velho ditador adoentado dita o livro a um secretário, para tentar justificar­se perante a história e também para provar a si mesmo que continua vivo, apesar de seus inimigos espalharem boatos pelo Paraguai que afirmam o contrário, provocando enorme perplexida­de na população, a tal ponto que o líder da nação chega a indagar se isso não teria alterado radicalmen­te o sentido do certo e do incerto. O ditador, porém, não é um verdadeiro fantasma que fala a seus “filhos”, mas um chefe ainda no exercício do poder que, fechado no palácio, coordena a caça a seus desafetos, que o comparam a Calígula. No entanto, o povo e as autoridade­s do interior do país não parecem ter certeza de nada, como comprova um ofício enviado a Assunção que o próprio ditador lê: “No dia 20 cantou-se uma vigília solene, e na missa o vigário predicou a oração fúnebre expondo por tema: Que o Excelentís­simo Supremo finado Ditador tinha desempenha­do não só as obrigações de um Fiel Cidadão, mas também a de um Fiel Pai e Soberano da República. Porém, a oração ficou incompleta por não poderem nem a multidão nem o padre conter o pranto que, silencioso a princípio, arrebentou em descompass­ada lamentação. O Pregador desceu do púlpito banhado em lágrimas”.

Às voltas com o discurso de poder (que é seu grande legado literário e político), o chefe paraguaio reage fazendo entre quatro paredes o elogio hilário da “cal da pátria”, que permitiu a reconstruç­ão da capital e de inúmeros povoados, após a instalação da primeira fábrica de cal no país: regeneraçã­o do branco no branco, que teria substituíd­o um passado de adobe e barro batido. Ou, em suas próprias palavras: “Também aqui no luminoso Paraguai o branco é atributo da redenção. Sobre este fundo de brancura cegante, o negro de que revestiram minha figura infunde ainda maior temor a nossos inimigos. O negro é para eles o atributo do Poder Supremo. É uma Grande Escuridão, dizem de mim tremendo em seus cubículos. Cegos pelo branco, teme mais, muitíssimo mais o negro em que percebem a asa do Arcanjo Exterminad­or”. Em Pedro Páramo, de Rulfo, o mistério do excesso de brancura (de claridade) num mundo habitado por fantasmas é também desvelado, a cada novo olhar do narrador, enquanto ele adentra às cegas a decadente Comala: “Na reverberaç­ão do sol, a planície parecia uma lagoa transparen­te, desfeita em vapores por onde transluzia um horizonte cinzento”.

Numa passagem de Los Diarios de Emilio Renzi: Los Años Felices (2016), o escritor argentino Ricardo Piglia narra um de seus encontros com Roa Bastos em 1975, pouco depois da publicação de Eu o Supremo: “Roa Bastos aparece em casa, conversa vacilante e errática sobre livros ingleses e sobre Virginia Woolf. O melhor são as histórias de seu trabalho, eu as escuto como se tivessem sido minhas há muitos anos atrás e eu as tivesse perdido. Passa um ano em Mar del Plata, sem fazer outra coisa além de escrever, alimentand­ose de peixes e sem dinheiro. Levantava-se às cinco da manhã e tomou anfetamina­s durante seis meses até terminar Eu o Supremo (e ter um enfarte)”. Piglia menciona Virginia Woolf, mas poderia também ter citado Joyce, cuja obra influiu na língua multifacet­ada do romance de Roa Bastos.

Se Roa Bastos atingiu a culminação do gênero “romance de ditador”, como sentenciou César Aira, isso se deve sem dúvida ao método joyciano de que se serviu com mestria para transforma­r literariam­ente os dados historiogr­áficos de que dispunha. Na “Nota final do compilador”, que encerra o romance, o autor paraguaio escreve, lembrando com ironia que os ditadores substituem os escritores, historiado­res, artistas, pensadores etc. : “Já terá percebido o leitor que, ao contrário dos textos usuais, este foi lido primeiro e escrito depois. Em lugar de dizer e escrever coisa nova, não fiz mais do que copiar fielmente o já dito e composto por outros. Não há pois na compilação uma só página, uma só frase, uma só palavra, desde o título até esta nota final, que não haja sido escrito desta maneira”. Enquanto Rulfo viveu no México sem ser molestado por nenhum tipo de governo, Roa Bastos teve de deixar seu país (escreveu a sua obra no exílio), ao qual só retornou em 1989, após a queda do ditador Alfredo Stroessner. Morou na Argentina e, depois, na França, onde se tornou professor universitá­rio entre 1976 e 1989. “Depois de sua morte”, comentou a professora Alai Garcia Diniz, “virou herói nacional do Paraguai e suas cinzas foram transporta­das para o panteão nacional”.

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ARCHIVO DE LA FUNDACIÓN JUAN RULFO /FOTOS DIVULGAÇÃO
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