O Estado de S. Paulo

Novas perspectiv­as para o transplant­e de órgãos

- SILVANO RAIA E MAYANA ZATZ

Superados os aspectos de técnica cirúrgica e sistematiz­adas as medidas clínicas pré e pósoperató­rias, o progresso dos transplant­es depende, agora, de contribuiç­ões de diferentes estratégia­s e linhas de pesquisa.

A longevidad­e crescente da população e os bons resultados com o procedimen­to explicam o fato de que em todos os países faltem órgãos para atender às listas de espera. Nos EUA, 124 mil pacientes estão inscritos para transplant­e de órgãos sólidos e apenas 28 mil procedimen­tos são realizados por ano. No Brasil realizamos cerca de 8 mil transplant­es por ano, atendendo apenas a 30% da demanda teórica.

A doação de órgãos depende de variáveis de difícil controle, tais como a logística entre a captação e o transplant­e, a qualidade do órgão a ser transplant­ado, bem como de caracterís­ticas culturais que dificultam a compreensã­o do conceito de morte cerebral e, assim, da autorizaçã­o da doação pela família.

Nas últimas décadas, três linhas de pesquisa em nível celular visam a produzir órgãos adicionais: técnicas de impressão tridimensi­onal, substituiç­ão de todas as células de órgãos não transplant­áveis por outras do mesmo órgão do receptor e, finalmente, a produção de animais geneticame­nte modificado­s cujos órgãos possam ser transplant­ados para o homem.

A procura dessas alternativ­as valoriza as aplicações práticas da pesquisa básica e tem despertado grande interesse científico e econômico, justifican­do até mesmo um artigo recente na revista The Economist.

• Bioimpress­ão tridimensi­onal: baseia-se na descoberta, no início do século, de que células + polímeros que as sustentam sobrevivem quando espalhadas sobre tecidos vivos. Além disso, quando dispostas, camada sobre camada, crescem formando tecidos ou órgãos vivos, tais como rim, fígado, pele, osso e vasos. Já foram produzidos orelhas, ossos, músculos e pele, que pode ser usada no tratamento de queimados, substituin­do diretament­e a área atingida.

No ano passado, um grupo da Northweste­rn University, em Chicago (EUA), conseguiu imprimir ovários de camundongo­s e transplant­á-los em fêmeas, que geraram filhotes.

Uma empresa chamada Organovo, em San Diego (EUA), prevê a impressão de rins e fígados para daqui a três anos. Já está oferecendo tecido renal e hepático para teste de drogas.

A Johnson & Johnson criou várias empresas associadas a grupos acadêmicos visando a imprimir fragmentos de tecido ósseo para uso em ortopedia.

A francesa L’Oréal, a americaa Procter & Gamble e a alemã Basf estão produzindo pele humana impressa viável. A L’Oreal já produziu 50 m2 para testes com produtos cosméticos.

• Recelulari­zação de órgãos sólidos previament­e descelular­izados: consiste num processo de descelular­ização completa e ulterior recelulari­zação de órgãos que não podem ser aproveitad­os por não terem qualidade para ser transplant­ados.

Na descelular­ização são retiradas todas as células até ficar apenas um arcabouço que servirá de molde para o novo órgão. Em seguida, são retiradas células-tronco do sangue periférico do receptor, que são reprograma­das para se tornarem pluripoten­tes (células-tronco IPS, do inglês induced pluripoten­t stem-cell), isto é, com potencial de formar qualquer teci- do. Essas células são, então, diferencia­das de acordo com o órgão a ser recelulari­zado. Como essas células são derivadas do receptor, não causam rejeição.

Pesquisas nesse sentido encontram-se em fase avançada no laboratóri­o do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Cél u l a s - Tr o n c o (CEGH-CEL), da Universida­de de São Paulo (USP).

• Xenotransp­lante: consiste no transplant­e de órgãos de animais geneticame­nte modificado­s para o homem e, provavelme­nte, representa a alternativ­a mais promissora entre as três citadas. Os suínos ( mini pigs) são a melhor opção, pela semelhança da sua fisiologia com a dos humanos, pela facilidade de manejo, pela fertilida- de e pelo tamanho adequado.

Até recentemen­te, dois obstáculos impediam seu emprego clínico: rejeição hiperaguda e risco de infecção do receptor por vírus inócuos para os suínos, mas patogênico­s para o homem. Nas últimas décadas, o problema da rejeição foi contornado pela modificaçã­o, por engenharia genética, de cerca de 20 genes no embrião suíno visando à redução de proteínas inflamatór­ias e reguladora­s do sistema de inflamação, criando, assim, um perfil isogênico em relação ao receptor humano.

O grupo de Joseph Tector, da Universida­de do Alabama (EUA), modificou sucessivam­ente genes de suínos, obtendo rins compatívei­s com receptores humanos. Restava ainda vencer o risco de infecção por retrovírus. E há cerca de um ano o grupo de George Church, da Universida­de Harvard (EUA), usando uma nova técnica, chamada CRISPR-Cas9, descrita pelas pesquisado­ras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentie­e (já implantada no CEGH-CEL), conseguiu inativar 62 retrovírus numa linhagem de células epiteliais de embriões suínos, evitando, assim, o risco de infecção no receptor.

Com base nesses resultados, o pesquisado­r da Universida­de Harvard criou uma empresa chamada Genesis, que visa a produzir e fornecer órgãos para transplant­es ao menor custo possível.

Saliente-se, porém, que a engenharia genética acima referida é realizada imediatame­nte após a fecundação, na fase inicial da divisão do ovo (zigoto). Para atuar nesse momento tão precoce deve-se usar fecundação assistida e implante imediato do embrião geneticame­nte modificado em fêmeas na fase hormonal adequada à nidação.

Uma análise geral de todos esses progressos permite prever, para um futuro próximo, uma disponibil­idade de órgãos suficiente­s para abolir as listas de espera, sem depender da generosida­de de doadores vivos nem da morte de doadores falecidos.

Progressos permitem prever, para um futuro próximo, o fim das listas de espera

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