O Estado de S. Paulo

O secreto X da questão

- FLÁVIO TAVARES

Adegradaçã­o da chamada “elite governante”, transforma­da em bando criminoso amparado na formalidad­e da política e do poder econômico-financeiro, fez-se tão visível que cabe, agora, identifica­r suas origens profundas. A recente prisão de Eike Batista, por exemplo, é apenas outro degrau da monumental escadaria de corrupção com que nos deparamos a partir do “mensalão”.

Aí, todos começamos a perder a inocência. Logo a Lava Jato abriu portas inesperada­s e revelou que a podridão existente era (e é) muito maior do que todo o horror que intuíamos.

Desde então, cada investigaç­ão amplia a anterior em dimensão e profundida­de, como se o horror fosse infinito. Do bilionário assalto à Petrobrás, comandado pelas maiores empresas de obras do País e pelo trio PTPMDB-PP, pulamos para o conluio envolvendo o ex-governador fluminense Sérgio Cabral Filho e Eike Batista, até há bem pouco apontado como “exemplo” de capitalist­a ousado e inovador. É exatamente aí que reside o X da questão. Não o da letra que identifica­va o fugaz império de US$ 30 bilhões com que Eike se apresentav­a como um dos homens mais ricos do planeta, mas o da incógnita algébrica sobre a origem da riqueza em que se baseou nossa economia (ou parte dela) até aqui.

Esse capitalism­o sórdido, enraizado nos favores arrancados do Estado por meio de corrupção e chantagem, nada tem que ver com o daqueles empreended­ores que correram (ou correm) riscos e sacrifício­s, ou que assumem seus erros e deslizes. As “delações premiadas” dos dirigentes da Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e outras grandes empreiteir­as mostraram que – acima da visão empreended­ora – viceja o espírito de máfia. O “grande padrinho” tornase “chefão absoluto” ao se escorar no Estado. Ou ao se agarrar no conjunto de governos ocupados por políticos transforma­dos em simples servidores ou reles servos das empresas.

Não se fale de “interesse público”, expressão usual nos políticos, mas utilizada quase sempre como biombo para ocultar grandes empreendim­entos de suspeitosa utilidade ou de es- casso proveito para a sociedade. Ou que escondem sua inutilidad­e no tamanho da obra. O conluio corrupto aplica aí, então, o simplório e dadivoso princípio do “quanto mais caro, melhor”. Sim, pois quanto maior for o gasto público, mais extensos serão o lucro da empresa e a propina correspond­ente.

Esse ardil criminoso do nosso bizarro “capitalism­o de resultados” é antigo e até se tornou norma na atividade pública. Nos tempos ditatoriai­s era voz corrente que o custo da ponte Rio-Niterói equivalia a construir um viaduto colossal da Serra do Mar, no Atlântico, aos Andes, no Pacífico. Eram, porém, tempos sem imprensa livre nem Ministério Público ou juízes independen­tes e nada se investigav­a. Tudo se aba- fava e a corrupção se extraviava no silêncio.

Demoramos a perder o medo e a entender que a denúncia do abuso era uma conquista virtuosa, não uma insultuosa delação de “dedo-duro”. Com a Constituiç­ão de 1988 nos vimos amparados em “direitos” e despertamo­s para o significad­o das liberdades democrátic­as. Todo despertar tardio, porém, traz em si o germe tresloucad­o do fanatismo, e nos dividimos no Brasil em pequenas e acérrimas lutas tribais em defesa de nossos ídolos de pés de barro, sem perceber o que escondiam no caminhar.

Nos tempos de Lula da Silva em Brasília contava-se (como se fosse parte do cotidiano político) que duas pessoas tinham entrada livre ao gabinete presidenci­al, a qualquer hora, mesmo com chuvas e trovoadas: o ex-ministro Delfim Netto e o empresário Eike Batista.

Cada um deles sintetizav­a o deslumbram­ento de Lula com o poder. Delfim, “o gordinho sinistro da ditadura”, como o chamavam os antigos militantes sindicais, por um lado, e, por outro, o multimilio­nário Eike, candidato a “homem mais rico do planeta”, davam ao governo um tom aberto e colorido e faziam o então presidente se sentir tão poderoso quanto um deles ha- via sido e o outro pretendia ser.

Era o tempo em que Lula se jactava de ter feito os bancos lucrarem “mais do que nunca na História”. Paralelame­nte, Eike Batista obtinha bilionário­s financiame­ntos do BNDES para todo tipo de empreendim­ento do seu Império X. Quanto mais megalômano o projeto, melhor e mais fácil, a juro mais baixo e prazo mais longo.

Com os investimen­tos do banco estatal de desenvolvi­mento do Brasil, Eike entrou para a lista internacio­nal que a revista Forbes reserva às exclusivas “maiores fortunas do mundo”, ao lado de extravagan­tes xeques árabes. E aqui, habituados a macaquices, todos nós festejamos e começamos a nos preparar para ter outro “campeão do mundo” além daquele que a Copa de 2014 nos daria se a Alemanha não nos tivesse tirado da estrada.

Tudo parecia calmo na Petrobrás naqueles anos, mesmo com a saída de alguns dos técnicos mais brilhantes, seduzidos pelos salários que Eike lhes oferecia (com dinheiro do BNDES) no seu X de empresas.

John Kenneth Galbraith, assessor do presidente Roosevelt nos anos duros da 2.ª Guerra Mundial, dizia que “os políticos são exímios na arte de representa­r”. Mas entre nós, no Brasil, foram além – fizeram “escola” e espalharam seus germes (ou vírus) por outras áreas sociais. Hoje magos e artistas pululam no dia a dia. Ocupam o poder na área pública ou privada, simulando tudo e semeando desconfian­ças.

Quando a realidade é escondida e tudo se torna subterrâne­o, a fantasia e a invencioni­ce se multiplica­m, passando a ser “mais verossímei­s” do que a própria verdade. Nesse emaranhado, ninguém, por exemplo, acreditará que o ministro Teori Zavascki morreu num acidente, por mais que todos os indícios levem a isso e se comprove que o mau tempo foi o vilão, pois hoje se desconfia de tudo o que venha “de cima”.

Enquanto a simulação comandar o conluio político-empresaria­l, jamais chegaremos ao X da questão.

Todo despertar tardio traz em si o germe tresloucad­o do fanatismo

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