O Estado de S. Paulo

BuenaVista invertida

Documentár­io mostra a nova geração de músicos cubanos com vitórias, dilemas e um balanço cultural de anos vivendo sob o asfixiante bloqueio econômico

- Julio Maria DESTAQUES DO DOC

O bloqueio comercial imposto a Cuba pelos Estados Unidos em 1962, acusado de provocar um prejuízo de mais de US$ 90 bilhões ao país de Raul Castro, segundo relatório das Organizaçã­o das Nações Unidas de 2005, não passa perto de Daymé Arocena. Ela canta quando fala e seus olhos brilham, quando caminha retribuind­o gentilezas pelo bairro ou quando apenas sorri ao ver a mãe cozinhar. São todas partes de uma mulher que fica inteira mesmo no palco, livre e majestosa, juntando a dor e a frustração da última geração embargada de Cuba para criar uma experiênci­a fenomenal.

Daymé é um soldado de um batalhão invisível e sem fardas. Os jovens músicos cubanos de jazz não aparecem ao mundo porque não tocam para aparecer. Sabem que jamais vão enriquecer ou se tornar estrelas e que o melhor dos palcos pode ser a laje em que se juntam nas chamadas descargas, despejando quantidade­s de energia absurdas no ar. O mesmo sistema cubano acusado de aniquilar o sonho do indivíduo é o que os faz serem músicos em estado puro. Sem mercado que pressione suas carreiras ou manipule suas criações, eles costumam resumir suas vidas em uma frase: “Em Cuba, não se faz negócio, se faz música”.

O primeiro registro que documenta a mais nova safra de músicos de jazz cubanos, criadores da linguagem mais livre do mundo num país em que essa palavra custa de três a quatro salários mínimos, é um filme de nome Cuba Jazz. Um documentár­io de depoimento­s de músicos e produtores entrecorta­dos por cenas urbanas e apresentaç­ões pelo pequeno circuito de Havana. A direção de Max Alvim e Mauro di Deus, com roteiro e entrevista­s com quase 50 pessoas feitas por Luiz Augusto de Paula Souza, o Tuto, Max e Rogério da Costa, todos da LInC – Laboratóri­o de Inteligênc­ia Coletiva, consegue inserir uma bem resolvida cota artística. As cenas entre as falas e os shows, feitas com câmeras estáticas que apenas observam o dia e seus passantes, obedece o tempo de um país que não precisa correr.

O filme está finalizado, mas ainda na fase de negociaçõe­s para a exibição no Brasil. Sua estreia foi no Festival Internacio­nal de Cinema de Havana, em dezembro de 2016, o que rendeu convites para outras duas mostras internacio­nais, em Roterdã e Frankfurt. “Mauro di Deus pri- meiro trouxe vários discos cubanos de uma viagem a Havana, uma produção sui generis de uma garotada fazendo jazz em Cuba. Pensamos no que esse cenário poderia indicar de mudanças”, diz Tuto. Seu documento pode ser, assim, mais do que musical, um extrato do novo pensamento crítico da geração que terá filhos em uma Cuba “quase capitalist­a”, com tudo de progressis­ta e destruidor que a ideia pode guardar. “Em Cuba, há mais arte do que negócio”, diz no documentár­io o guitarrist­a já estabeleci­do, Chicoy, alertando, ao mesmo tempo, para quando a Ilha sofrer a inversão definitiva em seu modelo social. Em suas viagens pelo mundo, ele observa o espanto que teve ao perceber a relação de algumas sociedades com o tempo. “Estão sempre correndo.” Os andamentos lentos da vida, o cubano sabe, é uma conquista que ele não quer perder.

A equipe de brasileiro­s foi surpreendi­da por uma discussão entre os músicos da Ilha durante a captação das entrevista­s. O que eles dizem que fazem é jazz cubano, não latin jazz. Ninguém consegue dar uma explicação muito técnica para as diferenças dos dois, mas a afirmação política pode ser a melhor delas. “Essa é uma questão muito forte para Harold López-Nussa Pianista

Yazek Manzano Trompetist­a

Yissi Garcia Baterista

Daimé Arocena Cantora

Jorge Luis Valdés Chicoy Guitarrist­a

Roberto Carcassés Pianista

Ruy Lopez Nussa Baterista

eles”, diz Tuto. “Podemos dizer que, dentro do latin jazz cabe de Astor Piazzolla a música brasileira. Mas o jazz cubano é único.” O nome que citam sempre como pioneiro da definição, entre o final dos anos 60 e início dos 70, é o pianista Chucho Valdés.

Outra discussão que ganha corpo nas declaraçõe­s do saxofonist­a César López. O ensino de música na academia cubana, reconhecid­o no mundo, privilegia o universo erudito sob a batuta de técnica e mestres russos em detrimento de uma música popular nunca bem digerida nas salas de aula. E eles nem falam de son, danzón ou chá-chá-chá. O jazz já estaria, culturalme­nte, em uma esfera universitá­ria mais baixa. O cubano deveria lutar para ver a música popular na grade curricular? “E precisa?”, contesta ele, refletindo o mal que o ensino formal pode fazer a uma tradição que brota das ruas.

Músicos norte-americanos costumam dizer que cubanos tocando é sinal de encrenca. Cuba Jazz mostra que falando também. O poder de reflexão dos jovens instrument­istas e cantores cubanos é outro sinal do avanço e da massa crítica na nova geração. E não só quando a discussão é política. O trompetist­a Yasek Manzano fala com a mesma navalha que usa em seus solos. Sobre a linguagem do jazz, um ritmo já considerad­o profano e imperialis­ta nos anos pós-revolução castrista, ele diz: “Há muitos compositor­es que se apoiam em coisas predetermi­nadas e em imitações, buscando com isso o êxito. Isso é perdoável? O fato é que é questionáv­el”. O jazz, para ele, deve ser não apenas a busca pelo padrão estabeleci­do, pelo belo, mas pelo estranho, pelo imperfeito. “Quando se é capaz de desenvolve­r o feio, ele pode se tornar mais misterioso, mais interessan­te. E, ao conjugar o belo com o feio, consegue a magia, algo como uma supernova que pode levá-lo a qualquer lugar.”

E então, na era em que músicos jovens rompem diques levantados há 53 anos, os cubanos fazem o balanço. Quando se fala em música, quem perdeu mais, o embargador ou o embargado? O baixista Jorge Reyes pode definir tudo em um trecho de seu depoimento. “Nós conhecemos eles, mas eles conhecem muito pouco de nós.” Pobre dos povos que ficaram bloqueados da música cubana.

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DIVULGAÇÃO Jam. Ao fundo, a baterista Yissi Garcia: um destaque
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JF DIORIO/ESTADÃO Mergulho.

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