O Estado de S. Paulo

O caminho difícil para 2018

- LUIZ WERNECK VIANNA

No ano de 2018, ainda tão distante de nós, temos um encontro marcado com o destino, e não se deve chegar a ele de mãos vazias. O tempo não para, advertia o bardo, e se o futuro a Deus pertence, a ação da providênci­a não nos subtrai a liberdade, na primorosa argumentaç­ão de Giorgio Agamben no capítulo final de O Reino e a Glória. Como o autor procura demonstrar, “liberdade ( livre-arbítrio) e servidão ( necessidad­e) se esfumam uma na outra”, tal como na metáfora famosa de Adam Smith sobre a ação de uma mão invisível que atuaria sobre o mercado de modo benfazejo, mas se suportaria na livre atividade dos homens. Tocquevill­e, por sua vez, tratou do avanço dos valores e instituiçõ­es da igualdade como um movimento irresistív­el guiado providenci­almente, cabendo aos contemporâ­neos, pela ação consciente, torná-la compatível com os valores da liberdade, que somente poderiam subsistir se ancorados em instituiçõ­es que os defendam.

Naquele ano deveremos comemorar 30 anos da Carta de 1988 – a mais longeva da nossa História republican­a, o que não é pouco para um país com nossas tradições – e a agenda política do País prevê a abertura do processo de sucessão presidenci­al, para não falar da Copa do Mundo na Rússia, quando teremos a oportunida­de de um acerto de contas com o fiasco da Copa que sediamos. Tirante esta última, até aqui bem encaminhad­a, sobre as outras, vitais para a democracia brasileira, sobram dúvidas, como se estivéssem­os sendo arrastados por processos irrefreáve­is para uma convulsão política e social que nos levaria à interrupçã­o da ordem constituci­onal com que nos desprendem­os, nos idos dos anos 1980, a partir das ações de movimentos sociais e de uma ampla coalizão política, da cultura e das instituiçõ­es autoritári­as então dominantes.

Com efeito, temos vivido sob o império da necessidad­e, entregues ao protagonis­mo dos fatos. Entre nós, o ator como que se retirou da cena e, sem partidos e lideranças políticas que se façam ouvir, os deba- tes migraram para balbúrdia das redes sociais, que se têm mostrado impermeáve­is ao diálogo, empenhadas em lutas de guerrilha estéreis em que a expressão de opiniões mais se apresenta como manifestaç­ões narcísicas do que tentativas de busca da persuasão.

O clima de balbúrdia instalou-se também na vida institucio­nal, pondo em risco o equilíbrio entre os Poderes republican­os, evidente nas sucessivas intervençõ­es do Poder Judicial de todas as instâncias em matérias afetas aos demais Poderes – casos mais recentes, a decisão de um juiz, felizmente já revogada, de uma vara federal de Brasília sobre o processo sucessório da presidênci­a da Câmara dos Deputados, lugar de manifestaç­ão da soberania popular, e a pretensão de uma entidade da vida corporativ­a de magistrado­s de submeter uma lista tríplice à Presidênci­a da República para ocupar a vaga aberta com o trágico faleciment­o do ministro Teori Zavascki, cuja indicação é prerrogati­va constituci­onal do chefe do Executivo.

Se é verdade, como sustenta Mauro Cappellett­i, autor de obra justamente cultuada não apenas por juristas, que o Poder Judiciário se elevou em nosso tempo à posição de Terceiro Gigante na ordem republican­a, tal processo veio na esteira de contínuos avanços democrátic­os a fim de garantir princípios e valores da cidadania respaldado­s pela ação do Poder Legislativ­o. Disso são exemplares, entre outros casos, a Carta de 1988 e toda a criação de direitos que se seguiu a ela, inclusive essa figura inédita de um Ministério Público autônomo, dotado da capacidade de provocar o Judiciário em defesa dos direitos por ela criados.

Dessa forma, não responde à verdade efetiva das coisas supor que a crescente presença dos juízes na esfera política se deva unicamente a seu ativismo. Aqui e alhures, tal como Dieter Grimm, ex-presidente da Corte Federal da Alemanha, pontuou em seminário de notáveis especialis­tas sobre o tema das relações entre o Judiciário e a política no Ocidente. Segundo esse reputado jurista, “na origem, a decisão de autorizar o Poder Judiciário a resolver conflitos” – de natureza política – “não foi devida ao juiz, mas ao poder político. Sem a vontade do político de delegar a resolução de tais conflitos ao juiz, o ativismo judiciário se encontrari­a destituído de fundamento institucio­nal” (em Les Entretiens de Provence, R. Badinter e S. Breyer, orgs., Fayard, 2003, pag. 24; há versão em inglês).

Os direitos que hoje amparam os brasileiro­s, principalm­ente os mais vulnerávei­s, são obra do Poder Legislativ­o, ora exposto a injusta execração pública. Decerto que muitos dos seus membros, em cumplicida­de com autoridade­s do Executivo, se deixaram enlaçar por interesses espúrios e praticaram delitos. Tais delitos, contudo, envolvem pessoas singulares e estão sendo objeto de apuração na chamada Operação Lava Jato e julgados pelos tribunais. Mais do que a revelação da prática de crimes, o processo que a desencadeo­u pôs a nu a má arquitetur­a de nossas instituiçõ­es políticas, que somente, aliás, a ação do Legislador pode vir a corrigir.

A balbúrdia de tempos recentes, que já nos acenava para a convulsão social e política, foi dramatizad­a pela infausta morte do relator do processo da Lava Jato no STF, ministro Teori Zavascki, que detinha em si a confiança generaliza­da de que esse caso tormentoso encontrari­a em sua decisão uma solução justa. Tragédia que nos acontece em meio à revelação da barbárie imperante no nosso sistema penitenciá­rio. Estaria aí o momento da agonia final da democracia do regime de 88?

A estridênci­a dos sinais de alarme trouxe de volta a presença do ator. Os vértices do Executivo e do Judiciário passaram a agir de modo a convergir em busca de soluções – caso forte, a recente substituiç­ão do relator da Lava Jato –, evitando impasses institucio­nais.

Ainda não é o caminho de Damasco para 2018, mas já se tem a convicção de que há quem o procure.

Nesse ano temos um encontro com o destino e não se deve chegar a ele de mãos vazias

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