O Estado de S. Paulo

Tramoia barata

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Um número cada vez maior de governos estaduais e prefeitura­s tem usado um desleal artifício para escapar dos rigores da Lei de Responsabi­lidade Fiscal (LRF). Sem capacidade para pagar suas despesas, esses governos vêm decretando estado de calamidade pública – destinado a situações anormais provocadas por desastres naturais –, quando, na verdade, sofrem as consequênc­ias de mera irresponsa­bilidade administra­tiva. Por um longo período, gastaram muito mais do que podiam e agora tentam escapar das consequênc­ias legais.

O primeiro a fazer tal manobra foi o Estado do Rio de Janeiro, em junho do ano passado. Depois, vieram Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Agora, parece ser a vez dos municípios. Segundo a Confederaç­ão Nacional dos Municípios (CNM), 62 municípios – 32 deles apenas neste mês de janeiro – decretaram estado de calamidade pública em razão de dificuldad­es financeira­s. No Estado de São Paulo, houve a edição do decreto em Americana, Cruzeiro, Hortolândi­a e Catanduva.

Com a medida, os governos estaduais e as prefeitura­s almejam enquadrar-se na exceção prevista pela LRF, que estabelece a calamidade pública como justificat­iva para uma situação momentânea de desequilíb­rio fiscal e isenta a respectiva administra­ção das punições previstas para os casos de irresponsa­bilidade fiscal.

Por exemplo, o art. 9.º da LRF estabelece que, constatada ao final de um bimestre a impossibil­idade de a receita cumprir as metas fiscais previstas, “os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessário­s, nos trinta dias subsequent­es, limitação de empenho e movimentaç­ão financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentár­ias”. Em busca de um mínimo de racionalid­ade na administra­ção pública, a l ei impõe uma medida elementar: se há estimativa de que as despesas serão maiores que as receitas, os governante­s devem diminuir as despesas.

O art. 65, II da mesma lei prevê, no entanto, que, “na ocorrência de calamidade pública reconhecid­a pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleia­s Legislativ­as, na hipótese dos Estados e municípios, enquanto perdurar a situação, serão dispensado­s o atingiment­o dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9.º”. Ou seja, diante de uma situação de calamidade pública, permitese a um governo gastar mais do que seria permitido numa situação normal, justamente para que se possa enfrentar adequadame­nte a calamidade.

No caso dos recentes decretos estaduais e municipais, não há qualquer calamidade pública. Há um grave desequilíb­rio fiscal, decorrente de uma gestão pública irresponsá­vel, que gastou mais do que devia. O uso nesses casos da exceção prevista na LRF apenas agrava o problema, já que são liberados para gastar mais justamente aqueles governos que mais deveriam conter suas despesas. É simplesmen­te o oposto do que a LRF prevê.

Na verdade, os municípios não parecem estar muito preocupado­s em observar o espírito da lei nem tampouco suas regras. Algumas prefeitura­s simplesmen­te editaram o decreto de calamidade pública, sem sequer obter a aprovação do Legislativ­o, descumprin­do assim a exigência prevista na LRF para esses casos.

O desequilíb­rio fiscal é muito mais do que mera questão legal. Trata-se de um problema administra­tivo sério, mesmo que a lei eventualme­nte não estabeleça alguma punição aos gestores públicos. Gastar mais do que arrecada é sempre uma situação insustentá­vel, que – além de tornar o ambiente econômico mais instável – coloca em risco a continuida­de da prestação de muitos serviços públicos, deixando especialme­nte vulnerável a população mais pobre, que mais depende da atuação estatal.

A solução do problema fiscal está justamente em não fechar os olhos à discrepânc­ia entre receitas e despesas – e a Lei de Responsabi­lidade Fiscal é parte necessária desse caminho. Atalhos a ela não costumam levar a bom destino.

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