O Estado de S. Paulo

‘É preciso um garantismo integral’, diz procurador

‘Se desenvolve­u no País o hipergaran­tismo, que só olha os direitos do réu, e não os da sociedade’, afirma Dallagnol

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Certa vez, numa viagem ao interior do Paraná, Deltan Dallagnol, o procurador da República que coordena a força-tarefa da Operação Lava Jato, ouviu, de um filho aflito, que o pai lhe contara ter sido diagnostic­ado com um tumor na próstata. Passado um ano, o pai voltou ao médico, que confirmou o tumor, já maior. Mais um ano, e crescera mais. “O cara não tomava providênci­a”, contou ao Estado em entrevista na PGR de Curitiba. “Até que o médico, preocupado, quebrou o protocolo e foi falar com o filho: ‘Olha, diagnóstic­o não vai resolver o problema do seu pai. Tem de tirar o tumor’.”

A história ilustrou uma preocupaçã­o crescente de Dallagnol: a visão da Lava Jato como a solução do problema da corrupção. “Acham que vai ter um antes e depois da Lava Jato sem reformas estruturai­s – e não vai”, disse. O procurador ainda defendeu a linha teórica que chama de “garantismo integral”, “que garanta os direitos dos réus, mas também os da sociedade”. Abaixo, os principais trechos da entrevista:

Quem ganha e quem perde, e o quê, se ficar derrubada a proposta das dez medidas contra a corrupção, defendida pelo Ministério Público Federal? Se elas não passarem, nós precisamos continuar lutando por reformas, para que o sistema de Justiça funcione. Eu vejo isso como um processo de fortalecim­ento da sociedade civil.

Não é uma visão de salvador da pátria? Não. Se quisesse passar a ideia de salvador de pátria, diria que a Lava Jato vai transforma­r o País. Não é isso que falamos.

O que é que os srs. falam? A sociedade vai perceber que a Lava Jato não é a solução. Ela faz o diagnóstic­o.

Explique melhor. Existe a ilusão de que pessoas indo pra cadeia resolve o problema. O que a gente busca fazer é desconstru­ir essa ilusão, mostrando que o que pode contribuir para a redução dos índices de corrupção são a reforma na justiça criminal, a reforma política e a atuação sobre outras condições que favorecem a corrupção.

E a Lava Jato? As pessoas acham que vai ter um antes e um depois da Lava Jato. Ela pode até contribuir, mas não resolve. Se não for seguida por modificaçõ­es estruturai­s, tudo ficará como antes.

O sr. defende uma corrente teórica que se contrapõe ao que chamam de hipergaran­tismo, ou garantismo hiperbólic­o monocular, definindo-o como uma exacerbaçã­o do direito de defesa. E propõe, em contrapont­o, o que chamam de garantismo integral. Pode explicar melhor? Acaba prepondera­ndo no Brasil uma corrente chamada de garantista, onde se defende que os direitos dos réus devem ser integralme­nte respeitado­s. Até aí todos nós concordamo­s. Não serve só para punir, mas para limitar a punição. O que se desenvolve­u no Brasil foi o que alguns chamam de hipergaran­tismo. É um garantismo hiperbólic­o, porque exacerbado, e monocular, porque só olha os direitos do réu, e não o direito da sociedade.

O que o sr. defende, então? Um garantismo equilibrad­o, integral, que garanta os direitos dos réus, mas também os das vítimas e os da sociedade.

Há fortes argumentos contrários a esse conceito do “hipergaran­tismo”. Um deles é que o garantismo está lastreado na Constituiç­ão de 1988, que consolidou os princípios “in dúbio pro reu” e da presunção da inocência. O hipergaran­tismo é uma interpreta­ção do que está na Constituiç­ão.

O sr. defende, no seu livro sobre as provas, que o princípio da boa fé deve ser valorizado. Acontece que não está constituci­onali- zado, enquanto o da presunção de inocência está, e deve, portanto, prevalecer. Ou não? A boa fé é algo inerente ao sistema de provas ilícitas, que o Brasil importou dos Estados Unidos. Só que quando a gente importou esse sistema, só importamos a metade que protege o réu.

A sua posição relativiza o constituci­onal “in dúbio pro reu” – o que é muito perigoso em um sistema democrátic­o. Não? Eu aprendi nos Estados Unidos um argumento que se chama slippery slope, ladeira escorregad­ia: “se você encosta em mim, daqui a pouco me dá um tapa e daqui a pouco um tiro”. Mas a questão é: esse slippery slope procede? Será que não há barreiras entre esse tocar na pele e o tiro? Nesse caso não existe.

O sr. defende, claramente, a relativiza­ção do princípio da presunção da inocência. Não. Digamos que você me dê essa caneta de presente. Eu vou dizer que você relativizo­u o direito à propriedad­e?

Desculpe, mas não é uma boa comparação... Direito à propriedad­e é um direito fundamenta­l, que são irrenunciá­veis e inalienáve­is. O que você fez foi compatibil­izar um direito inalienáve­l e irrenunciá­vel, com outro direito inalienáve­l e irrenunciá­vel, que é o direito à liberdade. Aí é que está a chave para entender o que a gente defende. Ninguém é contra a Constituiç­ão.

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