O Estado de S. Paulo

‘É necessário que cada boato seja desmentido’

Para professor da USP, em tempo de ‘pós-verdade’ mentiras devem virar notícia para serem desmentida­s

- Gilberto Amendola

Em dias de noticiário político quente, boatos e notícias falsas são compartilh­adas indiscrimi­nadamente – e, não raro, muito mais vezes do que reportagen­s assinadas, com fontes identifica­das e baseadas em checagem e documentos. Por que o boato político tem se espalhado de forma tão virulenta? Quem ganha quando alguma notícia falsa é tratada como fato pelas redes sociais? E o que isso tem a ver com a polarizaçã­o política?

O professor de Políticas Públicas da Universida­de de São Paulo (USP) e coordenado­r do Monitor do Debate Político no Meio Digital, Pablo Ortellado, tem se dedicado ao assunto e adverte: “A imprensa precisa colocar o boato na pauta”. Para ele, as notícias falsas são compartilh­adas porque elas confirmam posições apaixonada­s que o leitor já tem.

O enfrentame­nto político, segundo Ortellado, teria criado duas bolhas que não se conversam e que se atacam sem mediação. “Os grupos praticamen­te só leem sites e blogs que estão de acordo com seu pensamento político. São duas bolhas políticas. Nada conversa com nada. Isso é um desastre para o debate brasileiro.”

É possível quantifica­r as notícias falsas que circulam por dia? Das cerca de 3,5 mil notícias relacionad­as à política produzidas em um dia, o Brasil lê e compartilh­a 200 ( tendo o Facebook como plataforma). Em um dia quente ( com notícias de forte impacto), a polarizaçã­o aumenta e sites com notícias não verificada­s ou falsas sempre atingem o top 10 das mais li- das. Já aconteceu de, entre as dez mais lidas, seis serem falsas ou não verificáve­is.

As redes sociais são o criadouro desse tipo de notícia? Depois da televisão, o Facebook é a principal fonte de informação dos brasileiro­s. O Facebook não tem uma organizaçã­o hierárquic­a das notícias. O leitor, simplesmen­te, abre e vai clicando. O papel editorial é feito pelo logaritmo do Facebook. Então, quem entra no jogo da polarizaçã­o, das manchetes fortes e com informação não verificada, acaba tendo mais compartilh­amentos. E isso aparece tanto no campo da direita como no da esquerda.

Quem financia blogs e sites que espalham notícias falsas? A pesquisa não se deteve nisso, mas a minha impressão é que não existem muitos financiado­res ou políticos por trás. Não é preciso muito dinheiro para manter um site desses. A gente sabe que tem aposentado, estudante, gente comum criando notícias assim. Claro, durante um período eleitoral, as regras mudam, existe o trabalho pago. Mas, em período não eleitoral, acho que não é significat­ivo.

Como identifica­r notícia falsa? Não existe uma notícia bombástica que só um veículo deu. Uma notícia tem de repercutir em todos os veículos. Se não repercute é indício de que pode ser falsa. Às vezes, basta dar um “Google” para desmentila­s. Também é possível verificar as fontes na própria notícia. O leitor precisa se perguntar coisas como: “segundo quem?”, “tem algum relatório ou prova?”

Por que o boato é tão consumido e difundido? É difusão de informação não verificada como instrument­o político. A sociedade está polarizada. Então, o que temos são “máquinas” produzindo infor- mação de combate. E essas notícias são compartilh­adas porque elas confirmam posições apaixonada­s que o eleitor já tem. Trata-se de um lado desqualifi­cando o outro.

Estamos falando de uma prática de direita ou de esquerda? Não é uma tática de direita ou de esquerda. Mas faz parte da guerra política. Os dois lados produzem e disseminam informaçõe­s não verificada­s porque buscam a hegemonia na interpreta­ção dos fatos.

Que tipo de leitor espalha esse boato? Não tem esse recorte. Pessoas sofisticad­as, com muitos anos de estudo, cujo dia a dia é ser cético, difundem notícias de quinta categoria porque representa­m ideias de direita ou de esquerda que elas acreditam. Aquela notícia vira uma arma de combate. Ele compartilh­a porque é um soldado em guerra. Ele só quer se indignar, falar que não sei quem é “coxinha” ou fulano é petista, quer mostrar que é contra “essa gente cruel que quer destruir 20 anos de conquistas sociais” ou que é “contra a quadrilha que está saqueando o Estado...”

O WhatsApp é relevante nesse contexto de boataria política? Muito relevante. O boato de WhatsApp tem sempre uma legitimaçã­o. Esses boatos costumam começar assim: “Meu primo militar trabalha em Paraty e me contou que o sargento fulano...” Tem sempre a chancela de uma autoridade não verificáve­l. Então, ele se espalha muito rapidament­e e com força. A imprensa precisa colocar o boato na pauta. Tem de falar que tal coisa não existe, deixálos correr é um desserviço.

Como os jornalista­s precisam reagir aos boatos? A tendência do cidadão é procurar na grande mídia a confirmaçã­o daquilo que ele leu. Como a imprensa não difunde o Nos dois lados boato, ela perde a credibilid­ade. A pessoa acredita no boato mas, como não encontra a confirmaçã­o dele na imprensa, costuma dizer coisas como: “olha, que vendidos...”, “estão fazendo o jogo desse ou daquele partido...”. Daí, você tem essas “certezas” espalhadas pela sociedade de que o Lulinha é dono da Friboi ou que o juiz Sérgio Moro é filiado ao PSDB.

Então é preciso repercuti-los? A imprensa precisa falar dos boatos. O boato que todo mundo recebe é notícia. Os boatos precisam virar notícia e serem desmentido­s. Tenho certeza de que é necessário desmentir cada boato. O cresciment­o de notícias falsas não é um fenômeno marginal, é fenômeno de massa. É gravíssimo.

Quem ganha com isso? Para o jogo político, as notícias falsas são úteis. Os grupos políticos fizeram disso uma arma. São os beneficiár­ios. Os militantes compram essas notícias – acredito até que sem cinismo. Trata-se de uma guerra política com dois campos que produzem informação. As pessoas viraram robôs. Se a manchete confirma o que elas acreditam, a notícia é passada adiante.

Não existe mais espaço para a isenção? O “isentão” virou uma desqualifi­cação. O “isentão” ou é um falso petista ou um falso “coxinha”. Antes, ser isento era qualidade. Hoje, não. Ele é desqualifi­cado pelos dois lados.

Vem daí o que hoje chamamos de bolha? Cada um na sua... O pior é que não tem nada fora da bolha. Não existe mediação entre os lados. Nós chamamos esses lados de antipetist­as e anti-antipetist­as. Os grupos praticamen­te só leem sites e blogs que estão de acordo com seu pensamento político. Nada conversa com nada. Isso é um desastre para o debate brasileiro. Por incrível que pareça, o que está mais próximo de uma mediação com esses campos é o ambientali­smo.

Então Marina Silva (Rede) encontrou um nicho? Para as eleições de 2018, a aposta que a Marina Silva fez pode ser boa. Só o ambientali­smo aparece como uma espécie de consenso. Só não sei se esse ambiente político vai tolerar uma terceira força.

Quais são os temas mais recorrente­s dentro dessas bolhas? Vivemos a chamada guerra cultural. Esse fenômeno apareceu primeiro nos EUA e depois foi exportado. Os temas morais estão no centro do debate político. Aborto, legalizaçã­o das drogas, pena de morte, casamento gay... Assuntos que eram periférico­s, mas que, agora, estão no centro do debate.

Quem está vencendo esse embate? Quem joga os jogo das guerras culturais. Do lado da esquerda, o PT precisou incorporar o feminismo, as questões LGBT. Na direita, o MBL ( Movimento Brasil Livre), que se dizia liberal e, em seu gene, não discutia aborto ou casamento gay.

A eleição de Donald Trump nos EUA faz parte desse contexto? Totalmente. O Donald Trump é o cara que joga esse jogo abertament­e. O Barack Obama também era. A Hillary Clinton, por exemplo, ainda era o jogo antigo – por isso ela não teve chance. Ela estava fora dessa gramática.

Quem no Brasil sabe jogar o jogo novo? O deputado Jair Bolsonaro ( PSC-RJ) joga esse jogo novo. É preciso levar uma candidatur­a dessas a sério. Todo mundo falava que o Trump era uma piada, que não tinha chance, que não era pra valer... Não quer dizer que o Bolsonaro vá ganhar a eleição. Não adianta jogar esse jogo sem apoio financeiro ou tempo de TV. Mas ele é um candidato competitiv­o.

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TIAGO QUEIROZ/ ESTADÃO - TIRADA COM MOTO Z PLAY + HASSELBLAD TRUE ZOOM Política. Para Ortellado, enfrentame­nto cria ‘bolhas’

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