O Estado de S. Paulo

Um comando militar arriscado

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trabalhado­ra começaram a se dar conta de que as promessas do candidato Trump sobre emprego e assistênci­a médica não eram sinceras, as distrações externas se tornaram cada vez mais atraentes.

O provável ponto decisivo parecia ser Pequim, tema de falas duras de Trump, pelas quais as disputas a respeito das ilhas do Mar do Sul da China poderiam facilmente tornar-se conflitos militares. Mas, ao que tudo indica, a guerra com a China terá de esperar. Em primeiro lugar vem a Austrália, depois o México, depois o Irã, e então a União Europeia (jamais a Rússia.) E embora possa haver um cálculo cínico em algumas tentativas de provocar crises, essa se assemelha cada vez menos a uma estratégia política e cada vez mais a uma síndrome psicológic­a.

O confronto com o premiê australian­o, Malcolm Turnbull, chamou a atenção da imprensa em geral, provavelme­nte por ser tão estranha e gratuita. Afinal de contas, a Austrália é com certeza o amigo mais fiel dos Estados Unidos em todo o mundo, uma nação que muitas vezes combateu ao lado dos americanos. Evidenteme­nte, há divergênci­as, como acontece com tantas nações, mas nada que deva compromete­r a força da aliança – principalm­ente porque a Austrália é um dos países nos quais os EUA terão de confiar num eventual confronto com a China.

Mas essa é a era Trump. Em um telefonema a Turnbull, o presidente dos Estados Unidos gabou-se da vitória nas eleições e lamentou a existência de um acordo segundo o qual os Estados Unidos ficariam com alguns dos refugiados que estão com a Austrália, acusando o premiê australian­o de enviar “futuros terrorista­s de Boston”. Em seguida, encerrou abruptamen­te a conversaçã­o que durou apenas 25 minutos.

Pelo menos, Trump não ameaçou invadir a Austrália. Mas em sua conversa com o presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, ele fez exatamente isso. Segundo a agência Associated Press, ele disse ao líder democratic­amente eleito do país vizinho: “Você tem aí um bando de ‘homens maus’. E não está fazendo o suficiente para detê-los. Acho que seu Exército está com muito medo. O nosso não está, então posso mandá-lo aí para cuidar disso”.

Fontes da Casa Branca agora afirmam que essa ameaça – lembremos que os EUA na realidade já invadiram o México, e os mexicanos não se esqueceram disso – não passou de uma brincadeir­a.

Suas explosões com o México e a Austrália encobriram uma guerra convencion­al de palavras com o Irã, que no domingo testou um míssil. Essa foi definitiva­mente uma provocação. Mas a advertênci­a da Casa Branca de que o Irã estava avisado, levanta uma pergunta, avisado de quê? Consideran­do que o novo governo está afastando os aliados, sanções mais rigorosas não vão acontecer. Estamos preparados para uma guerra?

Contraste. Há ainda um curioso contraste entre a resposta do Irã e a resposta a outra provocação mais grave: a escalada da Rússia em sua guerra por procuração na Ucrânia. O senador John McCain pediu ao presidente Trump que ajude a Ucrânia. Entretanto, curiosamen­te, a Casa Banca não falou absolutame­nte nada a respeito das ações da Rússia até que, na noite de quinta-feira, Nikki Haley, embaixador­a dos EUA na ONU, emitiu uma condenação ao Conselho de Segurança. O que está ficando um tanto óbvio, não é mesmo?

Ah, e mais uma coisa: Peter Navarro, chefe do Novo Conselho Nacional do Comércio de Trump, acusou a Alemanha de explorar os Estados Unidos com uma moeda subvaloriz­ada. A este respeito, teria de haver uma interessan­te discussão econômica, mas não cabe a representa­ntes do governo fazer esse tipo de acusação, a não ser que estejam preparados para travar uma guerra comercial. Eles estão?

Duvido. Na realidade, esse governo parece desprepara­do em todas as frentes. Os telefonema­s agressivos de Trump não parecem fazer parte de uma estratégia econômica, nem política – planejador­es astutos não perdem tempo gabando-se de sua vitória e choraminga­ndo por afirmações da mídia sobre o tamanho do público.

Não, o que ouvimos parece mais um homem que não está em sua esfera de competênci­a e está fora de controle, que nem mesmo finge dominar a própria inseguranç­a. Suas duas primeiras semanas na presidênci­a têm sido um caos e a situação só poderá se agravar – talvez porque ele responde a cada desastre com uma tentativa desesperad­a de mudar de assunto, o que só leva a um novo desastre.

Os Estados Unidos e o mundo não têm condições de suportar mais isso. Pensem um pouco: se vocês tivessem um funcionári­o se comportand­o dessa maneira, o demitiriam imediatame­nte de qualquer posição de responsabi­lidade e insistiria­m para que ele buscasse ajuda profission­al. Esse sujeito é o comandante-chefe das Forças Armadas mais poderosas do mundo.

Planejador­es astutos não perdem tempo se gabando da própria vitória

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