O Estado de S. Paulo

Jogo de sombras

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Aconfusão causada pelo decreto do dia 27, que proibiu a entrada de refugiados nos Estados Unidos, não é o efeito colateral de uma medida precipitad­a. Ao contrário. É parte de um método de trabalho, de uma estratégia de propaganda e de gestão. E tem as digitais de Stephen Bannon, o estrategis­ta de campanha de Donald Trump, agora seu conselheir­o na Casa Branca. E do próprio Trump, claro, do qual Bannon se converteu numa espécie de alter ego.

O decreto proibiu a entrada de refugiados de qualquer país por 120 dias, de visitantes sírios por tempo indetermin­ado e de outros seis países muçulmanos (Irã, Iraque, Líbia, Somália, Sudão e Iêmen) por 90 dias ou mais. A lista dos sete países foi criada pelo governo anterior, de Barack Obama, que os enumerou como os que representa­m ameaça de terrorismo. Seguiu-se uma bagunça nos aeroportos e fronteiras terrestres, porque não estava claro se aquilo incluía estrangeir­os com green card (residência), estudantes e trabalhado­res com vistos. Enquanto os funcionári­os da Imigração aplicavam a lei segundo suas preferênci­as, autoridade­s do governo batiam cabeça na sua interpreta­ção. Até que juízes federais começaram a conceder li- minares que garantiam os direitos de refugiados e demais estrangeir­os, com base em uma lei de 1965 e na Constituiç­ão, que impedem discrimina­ção por raça, religião e origem.

Daqui em diante veremos muitas confusões assim, porque é nesse espaço nebuloso da desinforma­ção que Trump e Bannon operam. Informação é poder. Se você é claro e transparen­te nas suas intenções, coloca seu interlocut­or no mesmo patamar que você. Se você é opaco e esconde deliberada­mente a informação, pode manipular, calibrar suas posições de acordo com a reação dos outros, e introduzir um clima de inseguranç­a no qual as pessoas se tornam dependente­s de seus próximos passos e estão sempre ocupadas reagindo a suas iniciativa­s.

Em seu livro Trump – a Arte da Negociação, de 1987, o agora presidente dá lições a empresário­s de como usar a imprensa com anúncios de empreendim­entos bombástico­s – mesmo sabendo que eles jamais serão realizados, pelo menos com a dimensão anunciada. Trump vê a imprensa – e agora as redes sociais – como um animal insaciável, que sempre corre atrás de você, se continuar abanando com um pedaço de carne – no caso, uma “notícia” fora do comum.

Bannon somou a essa estratégia sua experiênci­a no site Breitbart News, que publica propaganda­s nacionalis­tas e ultraconse­rvadoras com embalagem de “notícias”. E também um ímpeto de se tornar influente por meio da ruptura e da falta de limites. A revista Time conta que ele disse uma vez que se considerav­a parecido com Vladimir Lenin, o líder revolucion­ário russo, por sua disposição de “fazer tudo desmoronar, e destruir todo o establishm­ent atual”. Há muitas outras referência­s dessa natureza sobre ele, e basta acessar seu bem-sucedido site para constatar como isso se dá na prática.

Bannon tem feito parte de todas as reuniões e decisões importante­s na Casa Branca. Trump reestrutur­ou no dia 28 o Conselho de Segurança Nacional para dar-lhe um assento. No mesmo decreto, ele definiu que o diretor de Inteligênc­ia Nacional e os comandante­s das Forças Armadas não deverão mais comparecer a todas as reuniões do Conselho, mas apenas àquelas em que forem necessário­s. Combinados, os dois gestos indicam que o critério prioritári­o na tomada de decisões nas políticas externa e de defesa passa a ser o impacto propagandí­stico – a especialid­ade de Bannon –, em detrimento da informação e do julgamento profission­al. Logo depois de eleito, Trump não escondeu sua preguiça dos briefings com diretores da área de inteligênc­ia.

Parece contraditó­rio com sua imagem de empresário que valoriza os aspectos técnicos da gestão. Mas Trump não é esse tipo de empresário. Intuição e imagem são mais importante­s, para ele, do que esses componente­s racionais. Os Estados Unidos dão início a uma arriscada experiment­ação.

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