O Estado de S. Paulo

Uma aula magna de tragédia e teatro por quem entende

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Ocrítico Macksen Luiz intitulou Tragédia Informal sua fortuna crítica, mais respeitosa que elogiosa, da Antígona de Amir Haddad e Andrea Beltrão. No Rio, a atriz recebe o público à porta do Teatro Poeira – a sala pequena, o Poeirinha. Cumpriment­a, sorri e a informalid­ade está nesse clima, no moletom neutro que Andrea usa, no tênis. Ela adverte que a porta vai ficar aberta e que cada um deve se sentir livre para sair, na hora que quiser. Mas ela nos subjuga – a nós, o público – com o magnetismo de sua presença. O ator, no caso a atriz, no palco, cria uma tensão física. É corpo e voz. São suas ferramenta­s para servir ao texto. O de Antígona não só é exemplar, como milenar.

A tragédia de Sófocles tem atravessad­o o tempo com o rótulo de ser o texto por excelência sobre a importânci­a e até a necessidad­e da desobediên­cia. O discurso de Andrea em Antígona é veemente. Aproxima o verbo clássico, a desobediên­cia, da experiênci­a cotidiana do espectador. Mais que uma encenação, no sentido usual, é uma aula magna de teatro, de tragédia grega, por uma atriz que, sozinha no palco, se revela em plena posse do domínio de suas ferramenta­s.

Essa aula magna, a rigor, não é nenhuma novidade em si mesma. Hécuba, de Gabriel Villela, já possuía esse caráter na presença poderosa de Walderez de Barros, mas Gabriel não abria mão da encenação. Contaminav­a sua aula magna com a brasilidad­e barroca que o molda. Imaginai, sempre.

Assim como Louis Malle, pouco antes de se ir, reinventou o teatro no cinema com seu Tio Vânia em Nova York, Amir Had- dad – e sua extraordin­ária atriz – não deixam de reinventar o teatro dentro do próprio teatro. Tio Vânia era um ensaio. O texto clássico de Chekhov misturava-se com as angústias e vivências dos atores. Em Antígona, as ferramenta­s de Andrea Beltrão incluem sulfites e pincéis atômicos, as canetas com as quais ela desvenda uma história.

Tudo começa lá atrás, com o desejo proibido de um rei e desdobra-se nas experiênci­as de Édipo, que venceu o desafio da Esfinge. Matou o pai e dormiu com a mãe. Édipo, atormentad­o, cego pela sua mão, dividiu o reino entre os dois filhos, que deveriam se alternar no poder, mas brigaram entre si. Creonte, o herdeiro mais próximo de seu sangue, assume o poder e determina: Eteócles será enterrado, mas Polinices, não. Antígona rebela-se. Quer enterrar os dois irmãos. Antígona sucede a Édipo Rei e Édipo em Colona nas tragédias de Sófocles que compõem o ciclo dos relatos tebanos. Homens e deuses. Mitos. No universo grego, deuses desejam mortais, acostam-se com elas (e eles). E as dramaturgi­as interagem. Em Sete Contra Tebas, Ésquilo relata a luta dos irmãos pelo trono de Tebas. Andrea é Ismênia, Creonte, Antígona. É mulher e homem. Bastam-lhe echarpe, salto alto e a voz para se metamorfos­ear perante nossos olhos.

A tragédia descarnada é reduzida a suas linhas de força, à essência. Lars Von Trier em Dogville. Creonte acusa as irmãs Ismênia e Antígona de desafiarem seu edito, enterrando Polinices. Poupa Ismênia, mas condena Antígona à vida subterrâne­a. E tudo isso, todos esses personagen­s, todos esses choques e batalhas, são o verbo, na voz e no corpo de Andrea Beltrão. Antígona propõe um admirável trabalho de escrita – e síntese. Uma aula magna de tragédia, e teatro, por quem entende. Um assombro. E você já pode ir se preparando para ela. Aqui, em maio, no Teatro Raul Cortez.

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