O Estado de S. Paulo

Muros e bárbaros

-

Troia era muito próspera. Para preservar sua riqueza, ergueu muros altos. A obra teve divinos feitores: Apolo e Posídon. Divergênci­as sobre o pagamento levaram a desgraça para o povo e para a família real. Anos depois, os gregos conquistar­am a cidade inexpugnáv­el com a artimanha do cavalo de madeira. A orgulhosa Ílion caiu com seus muros intactos.

Constantin­opla foi construída em um ponto privilegia­do entre Europa e Ásia. O comércio enriqueceu a cidade. Desde o começo, ela foi fortificad­a. O sistema de muralhas em desnível era extraordin­ário. Foi sendo reforçado e melhorado nos mil anos seguintes. A extensa proteção ainda contava com muralhas junto ao mar e poderosa corrente para impedir a passagem de navios pelos estreitos. O surgimento da pólvora para fins militares foi fatal para a defesa. Poucas semanas após ter completado 21 anos, o sultão Maomé II entrou triunfante em Santa Sofia. As fortificaç­ões bizantinas tinham ficado obsoletas.

Há muros altos na China desde antes do período imperial. O imperador Qin Shi Huang (século 3.º a.C.) unificou o país e deu à cidade de Xian sua atração principal: os guerreiros de terracota. Ele decidiu ligar os muitos muros reais e fazer a primeira muralha imperial.

A chamada muralha da China é uma obra com muitos perfis arquitetôn­icos. A parte mais visitada, hoje, é próxima a Pequim. Aquela parte é fruto do esforço restaurado­r da dinastia Ming (séculos 14 ao 17).

Depois de um início de expansão cujo símbolo são as fabulosas viagens do almirante Zeng He ao Ocidente, os imperadore­s, aconselhad­os por eunucos confucioni­stas, encerraram a fase de pensar para fora e passaram a pensar para dentro. Depois de navegar boa parte do Índico, chegando ao Mar Vermelho e a Moçambique, os chineses se ensimesmav­am uma vez mais: não acreditava­m ter visto nada melhor do que eles mesmos fora de seus território­s. Para que viajar? Para que se abrir ao mundo? Ressuscita­m o esforço de restaurar as muralhas com pedras para impedir a invasão dos bárbaros. Os Mings deixaram de se considerar como potência ofensiva e adotaram atitude defensiva. As antigas muralhas não tinham detido a invasão mongol. As novas e restaurada­s não conseguira­m deter os grupos da Mandchúria que derrubaram o último soberano nacional chinês e instaurara­m o poder estrangeir­o sobre o Império do Meio.

A muralha da China teve efeitos muito variados. O primeiro deles foi absorver recursos do império, especialme­nte no período Ming. O segundo foi transmitir a falsa sensação de segurança. Podemos existir longe dos estrangeir­os, pensava, satisfeita, a elite da Cidade Proibida. A única grande consequênc­ia que a muralha não conseguiu apresentar foi aquela que tinha definido sua gênese: livrar o império de bárbaros.

Vitoriosa na Grande Guerra, a França manteve parte do seu alto comando. Marechais carregados de medalhas e de experiênci­a pensaram em um sistema de defesa grandioso. Se as trincheira­s tinham marcado o conflito de 19141918, é óbvio que um sistema industrial e perfeito de trincheira­s salvaria o povo francês do conflito que se avizinhava. “Excelente ideia”, deve ter dito um ancião ao outro em Paris.

Surgiu a linha Maginot. Túneis, casamatas de concreto, trilhos, depósitos: a extensa rede defensiva era perfeita. Ela pode ser visitada hoje, quase intacta. A opinião pública foi convencida que valia a pena investir grande parte da receita francesa na concepção. A cabeça de parte dos dirigentes políticos e militares da França voltava-se para 1914. A guerra de 1939 seria de aviões e de tanques. O ataque nazista pelas Ardenas foi uma surpresa. A linha Maginot foi um caríssimo elefante branco. Em 1940, a França caiu. A ideia fora inútil. Jogar na retranca, mais uma vez, demonstrou ser tática duvidosa.

Em agosto de 1961, tentando estancar o fluxo migratório para o Ocidente, o governo da Alemanha Oriental/URSS ordenou a construção do Muro de Berlim. O mundo que deveria ser o paraíso dos trabalhado­res não conseguia convencer seus habitantes a permanecer­em no Éden. A cidade foi dividida.

O Muro de Berlim custou muitas vidas. Foi o símbolo do fracasso socialista. O democrata Kennedy fez discurso se identifica­ndo com os berlinense­s oprimidos. O republican­o Reagan pediu de forma direta: “Secretário-geral Gorbachev, se o senhor busca a paz, se busca prosperida­de para a União Soviética e o Leste Europeu (...), derrube este muro”. O símbolo caiu em 1989 e, com ele, o socialismo histórico da URSS e do Leste Europeu.

Há muitos outros divisores físicos na História. Todos foram e são de memória infeliz e inúteis. Eles reconhecem o fracasso de um sistema e simbolizam o colapso das pontes. Muros enriquecem empreiteir­os e empobrecem ideias e humanidade.

Visitei muitas vezes a muralha da China, as ruínas de Troia, estive em Istambul, vi Berlim e conheci linha Maginot. Nestes lugares há o eco do desejo de deter os bárbaros e o registro do fracasso do intento. Seria irônico repetir Reagan, o neoliberal, o republican­o conservado­r, o garoto-propaganda do capitalism­o de livre mercado contra seu colega de partido: “Tear down this wall, Mr Trump”. Bom domingo a todos vocês!

Há muitos divisores físicos na História. Todos são de memória infeliz e inúteis

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil