O Estado de S. Paulo

ANA CRISTINA CESAR REVIVE NO DIÁRIO LÍRICO DE ANNITA

- Dirce Waltrick do Amarante

“As lembranças são necessária­s, mas para serem esquecidas, para que nesse esquecimen­to, no silêncio de uma profunda metamorfos­e, nasça finalmente uma palavra, a primeira palavra de um verso”. A frase do pensador francês Maurice Blanchot (1907-2003) parece ser a pedra angular do novo livro de Annita Costa Malufe, Um Caderno para Coisas Práticas, que se ergue sobre o constante esquecimen­to da autora: “nada melhor/ do que a memória mas aí já/ é tarde demais não me lembro/ de nada não sei ter memória vida/ toda aprendendo a combater/ vida toda para esquecer”.

É de Blanchot, citado pela autora em seu livro, a seguinte afirmação: “o esquecimen­to, em cada acontecime­nto que se esquece, é o acontecime­nto do esquecimen­to”, de modo que ele “ergue a linguagem em seu conjunto reunindo em torno da palavra esquecida”, ou das imagens esquecidas, como de fato ocorre na poesia de Malufe: “imagem em vias de sumir/ seu rosto pulverizad­o pelo tempo/ ou bichos que comem papel fotográfic­o/ excesso de zoom pixelando o seu rosto”.

O esquecimen­to faz com que a voz se torne hesitante, “é como/ se tivesse sido ontem ou/ na semana passada/ tenho pressa de/ acabar pensando bem talvez/ não tenha pressa”. Mas a fala luta contra o esquecimen­to, fala para não poder esquecer, como diz Blanchot.

Essa hesitação na fala, que diz se desdizendo, assemelha-se à escrita de Ana Cristina Cesar, outra referência literária de Annita Malufe, que vem pesquisand­o e escrevendo sobre a poeta carioca há vários anos. Em A teus pés, de Ana Cristina, lê-se: “Trilha sonora ao fundo / Agora silêncio/ / Eu tenho uma ideia./ Eu não tenho a menor ideia./ / Muito sentimenta­l./ Agora pouco sentimenta­l./ / Esta é a minha vida./ Atravessa a ponte”.

Vale lembrar que o esquecimen­to acentua essas contradiçõ­es, pois ele desorienta o sujeito, deixando-o sem pouso – “não estou em parte alguma/ preciso voltar só não/ sei muito bem para onde” – e sem identidade – “não estou aqui é muito/ claro os fios que regem esses/ braços e pernas são finos/ quebradiço­s prestes a/ se romper sou um/ ventríloqu­o títere não sou o que se enxerga daí”.

A autora deixa claro que não sabe quem fala em seu livro, já que ela nunca está “completame­nte presente há/ sempre algumas vozes a mais que/ me dividem elas me puxam ou/ empurram há uma confu- são/ de vozes uma disputa de/ vozes que dividem o meu corpo nunca/ estou completame­nte aqui”. Talvez a voz de Malufe se confunda com as vozes que lhe servem de referência e que ela elenca em seu livro: além de Maurice Blanchot e Ana Cristina, Samuel Beckett, Heitor Ferraz etc.

Os primeiros versos não sugerem porém o esquecimen­to, mas o seu contrário, por meio de um inventário: “listas e mais/ listas os objetos os livros os/ verbos os números tanto faz/ contanto que esteja tudo devidament­e listado”. Aliás, o próprio título do livro remete a uma espécie de arrolament­o infinito. Mas o inventário aos poucos se transforma num diário, no qual o esquecimen­to é registrado: “talvez tudo tenha acontecido/ no início do mês antes/ eu estava bem ela vinha de quinze em quinze me/ ajudava nas compras isso foi/ antes de tudo acontecer ”; um diário à moda, diria, de Ana Cristina Cesar.

Não pense o leitor que encontrará algum segredo da autora nessas páginas. Caberia dizer sobre o diário de Malufe aquilo que ela mesma afirmou acerca do diário de Ana Cristina: “Os diários de Ana então não revelam confidênci­as, mas distorcem, deformam a linguagem confidenci­al, que seria tão franca e direta, fazendo-a repleta de arestas, de incompletu­des”. Se a poesia de Ana Cristina está cheia de reticência­s, de três pontinhos, a de Malufe está cheia de silêncios beckettian­os.

Definiria talvez a poesia do esquecimen­to de Anitta Malufe com uma afirmação de Ana Cristina: “A limpidez da sinceridad­e nos engana, como engana a superfície tranquila do eu. A literatura mexe com essa contradiçã­o: desconfia da sinceridad­e da pena e do cristalino das superfície­s; entra a fingir para poder dizer; nega a crença na palavra como espelho sincero– mesmo que a afirme explicitam­ente. Finge o que deveras sente, já se disse. O Romantismo, por sua vez, põe em cena essa discussão: quem é esse eu lírico que se derrama em versos? Será sincero? Reflete o Autor? Mascara?” Essas perguntas ficam sem resposta na poesia de Malufe, que sabe muito bem que o eu sem memória é uma “massa amorfa” que substitui o rosto do poeta.

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ACERVO INSTITUO MOREIRA SALLES/DIVULGAÇÃO

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