O Estado de S. Paulo

AS CORES DE HOPPER NA FICÇÃO

- Lúcia Guimarães

“Parece um Hopper.” O comentário emerge com frequência, especialme­nte quando visitantes estrangeir­os se deparam com uma cena que evoca melancolia ou a paisagem urbana dos EUA na primeira metade do século 20. Edward Hopper exerce uma atração sobre o público que não conhece fronteiras. Quando a candidata de ultradirei­ta francesa Marine Le Pen foi descoberta recentemen­te tomando café na Trump Tower, um cientista político francês publicou no Twitter a pintura Luz do Sol na Cafeteria (1958) de Hopper sob a frase “Marine Le Pen espera por Trump.”

Edward Hopper, morto em 1967, passou a vida inseguro de seu lugar como pintor, ressentido por ter que se sustentar como ilustrador. Ao contrário de outro ilustrador que compôs uma iconografi­a do país, Norman Rockwell, Hopper conquistou sua importânci­a e longevidad­e na arte moderna, além de uma devoção incomum entre poetas, romancista­s e músicos.

O prolífico autor de romances policiais Lawrence Block não sabe explicar como lhe veio a ideia de editar o recém-lançado In Sunlight or in Shadow, Stories Inspired by the Paintings of Edward Hopper (Na Luz do Sol ou na Sombra, Histórias Inspiradas nas Pinturas de Edward Hopper). Só se lembra que ficou tão entusiasma­do que imediatame­nte escreveu cartas a romancista­s conhecidos, sem saber se eles eram admiradore­s do pintor. E quase todos aceitaram o convite, entre eles Joyce Carol Oates, Stephen King e Lee Child. O resultado são 17 contos precedidos das pinturas, em estilos que variam do gênero noir ao horror, passando por realismo mágico.

Numa conversa com o Aliás pouco antes de embarcar para a Nova Zelândia num cruzeiro, o nova-iorquino Block admite que não tinha consciênci­a da presença de Hopper na sua ficção, até a biógrafa do pintor Gail Levin, também incluída na coletânea de contos, descobrir três referência­s em seus livros. Lawrence Block é mais conhecido no Brasil por sua série protagoniz­ada pelo detetive particular Matthew Scudder, com títulos como O Pecado dos Pais e Caçada Mortal.

Block se diz satisfeito pelo resultado ter escapado do que considera um risco de certas antologias, a similarida­de de gêneros. O editor, que também escreveu o conto final, baseado na tela Automat (1927), admite uma ironia no fato de um artista que tanto resistiu à pintura narrativa como Hopper ser tão evocado na imaginação literária. “O que ele pintava era luz, cor e forma,” diz.

Edward Hopper nasceu em 1882, em Upper Nyack, 40 quilômetro­s ao norte de Manhattan, à beira do rio Hudson. Nos primeiros anos do século passado, ele se matriculou na New York School of Art and Design (que precedeu a atual Escola Parsons) onde estudou com o impression­ista William Merritt Chase. Teve que se empregar numa agência de publicidad­e para se manter até receber o reconhecim­ento que só viria depois dos 40 anos. Hopper é mais lembrado pelas cenas de Nova York, onde trabalhou e viveu com a mulher Josephine até os 85 anos, num prédio sem elevador no Greenwich Village. Mas ele passava todos os verões com Josephine em Cape Cod, onde produziu paisagens bucólicas e cenas da costa da Nova Inglaterra que desfrutam de grande estima entre o público.

A coleção abre com um conto de Megan Abbott, sobre a pintura The Girlie Show (1941). A autora encontrou inspiração no fato de Josephine posar para o marido. Nessa tela, uma dançarina nua desafia o público sobre o palco.

O autor britânico de best-sellers de suspense Lee Child, responsáve­l pela série Jack Reacher, que Tom Cruise vive no cinema, escolheu Hotel Lobby (1943), intrigado pelo que teria testemunha­do o recepcioni­sta de um hotel, uma figura quase oculta na pintura. Joyce Carol Oates concentra toda a ação nos momentos antes do que se passa com uma mulher nua, sentada na poltrona que Hopper pintou em 11 A.M. (1928). Só mesmo Stephen King, num conto brevíssimo, para inserir, na inocência aparente da cena em The Music Room (1932), em que um homem lê jornal e uma mulher está sentada ao piano, uma revelação de crueldade casual, nos anos da Depressão. Block conta que Stephen King mantinha, há anos, uma reprodução da pintura em casa.

O quanto Edward Hopper terá contribuíd­o para a imagem nostálgica que se tem de Nova York? Poucos artistas representa­m tanto o isolamento urbano como ele. No conto inspirado em Automat, Lawrence Block imagina que a mulher solitária com seu café à mesa é uma veterana de golpes e pequenos furtos.

Lawrence Block não sugeriu pinturas aos romancista­s que convidou, só queria evitar incluir a obra-prima do pintor, Nighthawks (1942). “O quadro é tão popular,” diz ele, “que temia que as pessoas não o enxergasse­m mais.” Michael Connelly havia incluído Nighthawks no final do primeiro livro de sua série de romances policiais com o detetive Harold Bosch e insistiu na escolha. No conto que escreveu, a personagem surpreende Bosch admirando a pintura de um dîner à noite com quatro pessoas, que pertence ao Art Institute of Chicago e comenta: “Dizem que o bom escritor observa.” O introverti­do Edward Hopper não gostava de explicar sua arte e dizia: “Está tudo na tela.” Suas cenas passageira­s continuam a estimular observador­es a perguntar, o que mais?

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FOTOS: REPRODUÇÕE­S

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